Lendo o livro de Ben Sira, o Sábio
O Senhor é um juiz
que se mostra imparcial em relação às pessoas.
Ele não discrimina os pobres,
Ele ouve a oração dos oprimidos.
Ele não despreza a súplica do órfão,
nem a queixa repetida da viúva.
Aquele cujo serviço agrada a Deus será bem recebido,
sua súplica chegará ao céu.
A oração do pobre atravessa as nuvens;
até que ela alcance seu objetivo, ele permanece inconsolável.
Ele persevera até que o Altíssimo olhe para ele,
nem pronunciou sentença em favor dos justos e fez justiça.
– Palavra do Senhor.
Quando a oração dos humildes quebra o silêncio do céu
A voz dos esquecidos chega ao trono de Deus: descubra como a pobreza espiritual abre um caminho privilegiado ao coração do Altíssimo e transforma nossa relação com a justiça divina.
Em um mundo onde o sucesso e a força parecem reinar supremos, o livro de Ben Sira revela uma inversão radical: é a oração dos pobres, dos fracos, dos oprimidos que atravessa as nuvens e alcança diretamente o coração de Deus. Esta passagem do Eclesiástico (Eclesiástico 35:15b-17, 20-22a) proclama uma verdade devastadora para todos os tempos: Deus não é indiferente à condição humana; ele é um juiz imparcial que ouve preferencialmente aqueles que o mundo ignora. Esta palavra antiga, escrita no século II a.C., ressoa com força profética em nossa sociedade contemporânea e nos convida a redescobrir o poder transformador da oração dos humildes.
Este artigo o guiará por cinco movimentos essenciais: primeiro, situaremos este texto em seu contexto histórico e espiritual; segundo, analisaremos o paradoxo divino da imparcialidade que favorece os pobres; depois, exploraremos três dimensões fundamentais: a justiça divina, a perseverança na oração e a solidariedade com os oprimidos; depois, estabeleceremos vínculos com a grande tradição cristã; e, finalmente, proporemos maneiras concretas de incorporar esta mensagem em nossa vida diária.

Contexto
O Livro de Sirach, também conhecido como Sirach ou Eclesiástico, ocupa um lugar especial na história bíblica. Escrito em hebraico por volta de 180 a.C. por Yeshua Ben Sirach, um sábio de Jerusalém, esta obra de sabedoria foi composta em um momento crucial da história judaica. O autor viveu em um período de intensa tensão, quando a cultura helenística, impulsionada pelas conquistas de Alexandre, o Grande, ameaçava dissolver a identidade religiosa do povo judeu. Diante dessa onda de assimilação cultural, Sirach se propôs a reafirmar a força e a relevância da tradição judaica, demonstrando que a sabedoria de Israel não tinha nada a invejar das filosofias gregas.
Esse contexto histórico explica o tom particular do livro: Ben Sira busca transmitir uma sabedoria enraizada na Lei e nos Profetas, ao mesmo tempo em que dialoga com os desafios de sua época. O sábio provavelmente lecionou em uma escola em Jerusalém, treinando jovens nas virtudes necessárias para navegar em um mundo complexo. Seu neto posteriormente traduziu a obra para o grego por volta de 132 a.C., permitindo sua disseminação por todo o mundo mediterrâneo e sua inclusão na Septuaginta, a Bíblia grega dos primeiros cristãos.
Nossa passagem específica, localizada no capítulo 35, enquadra-se em uma seção do livro dedicada à prática religiosa autêntica. Ben Sira acaba de discutir o valor dos sacrifícios e da adoração, argumentando que a observância da Lei vale mais do que muitas oferendas rituais. É nesse contexto que ele introduz um ensinamento fundamental sobre a natureza de Deus e sua relação com os pobres, os oprimidos, os órfãos e as viúvas — aquelas categorias de pessoas que, no mundo antigo, se encontravam sem proteção legal ou social.
O texto litúrgico que estamos estudando tem uma estrutura cuidadosamente elaborada: começa com a afirmação da imparcialidade divina, continua com a enumeração daqueles a quem Deus particularmente ouve (os pobres, os oprimidos, os órfãos, as viúvas), culmina com a poderosa imagem da oração atravessada pelas nuvens e termina com a garantia da perseverança recompensada. Essa progressão revela uma profunda teologia da oração e da justiça divina, na qual a aparente fraqueza humana se torna, paradoxalmente, o caminho privilegiado para o coração de Deus.
O Paradoxo Divino Revelado
No cerne do nosso texto está um paradoxo fascinante que desestabiliza nossas concepções habituais de justiça: Deus é apresentado como um juiz “que se mostra imparcial para com as pessoas” e, no entanto, imediatamente depois, o texto afirma que “ele não discrimina os pobres” e que “ele ouve a oração dos oprimidos”. Como podemos conciliar essa imparcialidade divina com o que parece ser uma preferência marcante pelos pobres?
Este aparente paradoxo, na verdade, revela uma profunda compreensão da verdadeira justiça. A imparcialidade de Deus não significa que Ele trate todos os seres humanos de forma idêntica, independentemente de suas circunstâncias; em vez disso, significa que Ele não é afetado pelos critérios de poder, riqueza ou status social que dominam os julgamentos humanos. Nas sociedades antigas, como na nossa, os tribunais humanos frequentemente favorecem, consciente ou inconscientemente, os poderosos, os ricos, aqueles com conexões e meios para se defender. Deus, por outro lado, inverte essa lógica perversa: sua imparcialidade consiste precisamente em não reproduzir as injustiças estruturais que caracterizam nossas sociedades.
Ao afirmar que Deus "não discrimina os pobres", Ben Sira traça um contraste implícito, mas poderoso, com as práticas judiciais de sua época. Os pobres, os órfãos e as viúvas eram sistematicamente desfavorecidos nos tribunais humanos: faltavam-lhes os meios para subornar juízes, as conexões para fazer valer seus direitos e, muitas vezes, até mesmo o conhecimento dos procedimentos legais. Diante dessa injustiça estrutural, Deus se apresenta como o juiz que restaura o equilíbrio, que dá voz aos silenciados, que dá ouvidos aos que nunca são ouvidos.
Este paradoxo da imparcialidade preferencial encontra sua explicação última na própria natureza de Deus como criador e pai de todos. Precisamente por ser o pai de todos, Deus se preocupa mais com a criança em perigo, a criança ferida, a criança esquecida. Essa “opção preferencial pelos pobres”, para usar a expressão da teologia moderna, não é uma exclusão dos ricos, mas uma correção da exclusão que os pobres já sofrem na ordem social. Ela manifesta a vontade divina de restaurar uma igualdade fundamental pisoteada pelas estruturas humanas de opressão.
Ben Sira desenvolve essa visão multiplicando as categorias de pessoas a quem Deus particularmente ouve: o oprimido, o órfão, a viúva. Essas três figuras representam os arquétipos da vulnerabilidade social na Bíblia. O oprimido sofre a injustiça de um sistema que o esmaga; o órfão perdeu o protetor natural, o pai, em uma sociedade patriarcal; a viúva perdeu seu status social e legal com a morte do marido. Todos os três compartilham uma característica comum: sua impotência diante das estruturas estabelecidas, sua incapacidade de fazer valer seus direitos por meios convencionais. É precisamente essa impotência que abre um caminho direto para Deus.

Justiça divina em ação
A primeira dimensão fundamental do nosso texto diz respeito à própria natureza da justiça de Deus, que se opõe radicalmente às formas corruptas de justiça que conhecemos nas sociedades humanas. Quando Ben Sira proclama que "o Senhor é um juiz que demonstra imparcialidade para com as pessoas", ele não está simplesmente fazendo uma declaração teológica abstrata; ele está anunciando uma revolução em nossa compreensão do que é a verdadeira justiça.
No mundo antigo, como em muitas sociedades contemporâneas, a justiça estava — e continua — à venda. Juízes aceitavam subornos, favoreciam amigos e parentes e proferiam veredictos com base no status social das partes, em vez da verdade dos fatos. Essa corrupção do sistema judicial foi uma das queixas mais constantes dos profetas hebreus, de Amós a Isaías, de Miquéias a Jeremias. Eles denunciavam incansavelmente juízes que "vendiam o justo por prata e o pobre por um par de sandálias".
Diante dessa perversão generalizada, a declaração de Ben Sira ressoa como um trovão de esperança. Há um tribunal onde a sorte é lançada antecipadamente, onde a balança não pende a favor do maior lance, onde a voz dos fracos conta tanto — ou até mais — que a dos poderosos. Este tribunal é o próprio coração de Deus, acessível através da oração. Esta declaração teve — e mantém até hoje — um significado profundamente subversivo. Significa que a ordem social estabelecida, com suas hierarquias e privilégios, não reflete a ordem divina; significa que o último na Terra pode ser o primeiro no julgamento de Deus.
Essa visão da justiça divina como um reequilíbrio fundamental encontra eco particular na experiência concreta da oração. Quando uma pessoa oprimida ora, realiza um ato de resistência espiritual contra a injustiça que a oprime. Ela afirma que, além das aparências, além das estruturas sociais que a mantêm impotente, existe uma autoridade superior que vê, que ouve, que se importa. Essa afirmação não é uma fuga para o além, uma resignação passiva diante da injustiça; pelo contrário, é a fonte de uma esperança que nos permite continuar a resistir, a exigir, a perseverar apesar da adversidade.
Ben Sira enfatiza particularmente que Deus "não despreza a súplica do órfão, nem a queixa repetida da viúva". O verbo "desprezar" é crucial aqui: descreve a atitude habitual dos poderosos em relação às queixas dos fracos, essa maneira de ignorar suas súplicas, de tratá-las como quantidades insignificantes. Deus, no entanto, não despreza. Ele leva a sério o que os homens consideram insignificante; Ele ouve atentamente o que os tribunais humanos rejeitam sem exame. Essa atenção divina aos últimos revela uma hierarquia de valores radicalmente diferente daquela que rege nossas sociedades.
A justiça divina também envolve uma dimensão temporal essencial: ela será exercida. O texto afirma que Deus "proferirá sentença em favor dos justos e fará justiça". Essa promessa de justiça futura não é um ópio destinado a acalmar os oprimidos para que acalmem sua desgraça; é uma garantia que nutre a perseverança e a resistência. Saber que a situação atual não é definitiva, que a última palavra não pertence aos opressores, que as lágrimas de hoje serão enxugadas amanhã, nos dá a força para permanecermos firmes em tempos de provação. Essa esperança escatológica constitui um dos pilares da fé bíblica e cristã..
Perseverança na oração
A segunda dimensão central do nosso texto diz respeito à própria natureza da oração dos pobres e à sua característica essencial: a perseverança. A imagem que Ben Sira utiliza é notavelmente poética: "A oração do pobre atravessa as nuvens; enquanto não atingir o seu objetivo, permanece inconsolável." Essa metáfora da travessia das nuvens revela vários aspectos fundamentais da experiência espiritual do oprimido.
As nuvens, no imaginário bíblico, frequentemente representam a barreira entre os mundos terrestre e celestial, entre o humano e o divino. Elas evocam tanto a proximidade quanto a distância de Deus: próximas porque as nuvens fazem parte da nossa experiência diária do céu, distantes porque ocultam o que está além. Ao afirmar que a oração dos pobres "atravessa as nuvens", Ben Sira proclama que essa oração tem um poder especial para transpor a distância entre a terra e o céu, para romper o véu que esconde o rosto de Deus. Esta é uma afirmação extraordinária: a oração gaguejante dos pobres, talvez carente de eloquência e fórmulas sofisticadas, alcança diretamente o trono de Deus com mais segurança do que as orações elaboradas dos poderosos.
Mas o texto não se limita a esta primeira imagem. Acrescenta um esclarecimento crucial: "enquanto não atinge o seu objetivo, permanece inconsolável". Esta frase revela a dimensão existencial da oração do pobre: nasce de uma necessidade real, urgente, vital. Não é uma oração de conforto ou de rotina, é um grito arrancado pela angústia, uma súplica que envolve todo o ser. A "inconsolabilidade" do pobre não é uma fraqueza, mas uma força: manifesta a autenticidade da sua oração, a impossibilidade de se contentar com respostas superficiais ou consolações artificiais. Esta oração só pode ser apaziguada por uma resposta verdadeira, uma intervenção verdadeira, uma justiça verdadeira.
A perseverança está no cerne desta espiritualidade da oração dos pobres. Ben Sira insiste: "Ele persevera até que o Altíssimo o tenha contemplado, pronunciado a sentença em favor dos justos e feito justiça". Essa perseverança não é teimosia ou obstinação; é fidelidade a uma esperança contra todas as probabilidades. É a recusa de se resignar ao mal, de se acomodar à injustiça, de aceitar como definitiva uma situação que nega a dignidade humana. Essa perseverança na oração torna-se, assim, um ato de resistência espiritual, uma afirmação obstinada de que as coisas podem e devem mudar.
A Igreja primitiva, diante de perseguições e dificuldades, meditou profundamente sobre esse ensinamento de Ben Sirah. Encontrou nele um modelo de oração para tempos difíceis: uma oração que não desiste, que continua a bater à porta do céu mesmo quando ela parece fechada, que se recusa a ficar em silêncio mesmo diante do aparente silêncio de Deus. Essa espiritualidade da perseverança está enraizada na convicção de que Deus sempre responde no final, que sua justiça sempre acaba sendo cumprida, mesmo que seus atrasos excedam nossa compreensão.França-Católica+4
A perseverança na oração também revela uma dimensão profunda da relação com Deus: manifesta confiança. Perseverar na oração apesar da aparente ausência de resposta é afirmar que Deus existe, que Ele escuta, que Ele se importa, que Ele agirá em Seu próprio tempo. É um ato de fé que transcende a experiência imediata do silêncio ou da ausência. Nessa perspectiva, a própria perseverança se torna uma forma de resposta: ao continuar a rezar, o pobre já recebe algo de Deus, uma força interior que lhe permite não cair no desespero, uma esperança que o mantém de pé apesar da adversidade.
Ben Sira também estabelece uma ligação entre a qualidade da oração e a qualidade do serviço prestado a Deus: "Aquele cujo serviço agrada a Deus será bem recebido, e sua súplica alcançará o céu." Este versículo sugere que a oração autêntica faz parte de um todo maior de fidelidade a Deus. Não se trata de uma técnica mágica para obter favores, mas da expressão de um relacionamento vivo, nutrido pela observância da Lei, pela prática da justiça e pela preocupação com os outros. A oração que "alcança o céu" é aquela que surge de uma vida coerente com as exigências divinas.

Solidariedade com os oprimidos
A terceira dimensão essencial do nosso texto diz respeito ao chamado implícito à solidariedade com aqueles a quem Deus prefere ouvir. Se Deus se coloca do lado dos pobres, dos órfãos, das viúvas e dos oprimidos, então aqueles que desejam caminhar com Deus devem fazer o mesmo. Essa lógica permeia toda a Bíblia e constitui um dos critérios fundamentais para a autenticidade da fé.
O texto de Ben Sira nos confronta com uma pergunta perturbadora: de que lado estamos? Estamos entre aqueles cujas orações têm dificuldade em atravessar as nuvens porque surgem de uma vida marcada pela indiferença ao sofrimento alheio? Ou concordamos em nos identificar com os pobres, em fazer nossas as suas causas, em nos unir às suas orações? Essas perguntas não são retóricas; elas envolvem toda a nossa existência cristã.
A tradição católica desenvolveu essa intuição sob o nome de "opção preferencial pelos pobres". Essa expressão, popularizada pela teologia latino-americana e adotada pelo magistério da Igreja, afirma que os cristãos devem fazer suas as prioridades do próprio Deus. Como enfatizou o Papa Bento XVI, "a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para nos enriquecer com a sua pobreza". Essa opção não é apenas mais uma escolha ideológica ou política; ela flui diretamente da própria natureza de Deus revelada nas Escrituras e encarnada em Jesus Cristo.
Essa solidariedade com os oprimidos deve ser traduzida concretamente em nossas vidas. Ela envolve, antes de tudo, uma conversão de perspectiva: aprender a ver os pobres não como objetos de piedade ou caridade condescendente, mas como sujeitos privilegiados da revelação divina, como aqueles por meio dos quais Deus nos fala e nos desafia. Essa conversão de perspectiva transforma radicalmente nossas relações sociais e nossos compromissos. Ela nos impele a ouvir verdadeiramente os pobres, a aprender com eles, a reconhecer neles uma sabedoria e uma dignidade que nossas sociedades sistematicamente negam.
A solidariedade com os oprimidos implica, portanto, um compromisso com a justiça social. Não podemos afirmar que Deus ouve preferencialmente os pobres e permanecer indiferente às estruturas sociais, econômicas e políticas que criam e mantêm a pobreza. A oração dos pobres que atravessa as nuvens nos convoca a trabalhar para que essa oração encontre resposta não apenas na vida após a morte, mas também no aqui e agora, em transformações concretas que reduzam a injustiça e restaurem a dignidade. É aqui que a dimensão contemplativa da oração encontra a dimensão ativa do compromisso com a justiça.
Essa solidariedade também tem uma importante dimensão litúrgica e comunitária. Quando a Igreja se reúne para orar, deve ser o lugar onde a voz dos pobres possa ser expressa, onde suas preocupações se tornem nossas preocupações, onde suas orações se tornem nossas orações. Com muita frequência, nossas liturgias refletem as preocupações das classes média e alta, obscurecendo os clamores dos marginalizados. Uma Igreja fiel à mensagem de Ben Sira seria uma Igreja onde a oração dos pobres fosse central, onde os últimos tivessem a primeira palavra.
Por fim, a solidariedade com os oprimidos implica uma certa forma de pobreza espiritual para todos os cristãos. Mesmo aqueles que não são materialmente pobres são chamados a cultivar essa atitude interior dos pobres que reconhecem sua total dependência de Deus, que não depositam sua confiança em riquezas ou poder, que mantêm seu coração livre e disponível. É a isso que Jesus chamará de "pobres em espírito" nas Bem-aventuranças, essa disposição interior que permite que a oração penetre as nuvens, independentemente de nossa condição social.
Tradição
Nossa passagem de Ben Sira influenciou profundamente a tradição espiritual e teológica do cristianismo, embora o livro de Sirácida ocupe um status especial no cânone bíblico. Os Padres da Igreja, embora cientes dos debates sobre a canonicidade deste livro, citaram-no e meditaram sobre ele extensivamente, reconhecendo sua profunda sabedoria espiritual.
São Cipriano de Cartago, no século III, citava regularmente Sirac em seus escritos, considerando-o uma fonte de ensinamentos autênticos sobre a vida cristã. Essa prática era comum entre os Padres latinos, que distinguiam entre o "cânone da fé" (livros cuja autoridade era universalmente reconhecida) e o "cânone da leitura eclesiástica" (livros úteis para a instrução espiritual). Sirac claramente pertencia a esta última categoria, e seus ensinamentos sobre a oração dos pobres repercutiram particularmente em comunidades cristãs que enfrentavam perseguição e injustiça.
Rábano Mauro, bispo de Mainz no século IX, compôs o primeiro comentário cristão sistemático sobre o livro de Sirácida. Em sua abordagem edificante, ele enfatizou como os ensinamentos de Sirácida prefiguraram e prepararam o caminho para a revelação do Evangelho. Para ele, o tema da oração dos pobres encontrou sua realização nos ensinamentos de Jesus sobre as Bem-Aventuranças e em sua própria identificação com os pobres e marginalizados.
A tradição espiritual medieval desenvolveu uma rica teologia da oração dos pobres. As ordens mendicantes, em particular as franciscanas e as dominicanas, fizeram da pobreza evangélica o cerne do seu carisma. São Francisco de Assis, desposando a Senhora Pobreza, redescobriu intuitivamente o ensinamento de Ben Sira: é na abnegação voluntária, na identificação com os menores entre estes, que a oração adquire o seu maior poder de penetrar as nuvens e alcançar o coração de Deus.
A espiritualidade do Rosário, esta "oração dos pobres" por excelência, também estende a tradição do Eclesiástico. Simples, repetitivo, acessível a todos sem necessidade de erudição teológica, o Rosário permite que os humildes se unam a Maria em sua meditação sobre os mistérios da salvação. Esta oração popular, tão amada pelas pessoas comuns, pelos doentes e por aqueles que carecem de palavras eruditas, testemunha a verdade que Ben Eclesiástico já proclamava: Deus ouve orações simples que brotam de um coração sincero com mais facilidade do que discursos teológicos sofisticados.
A tradição litúrgica católica incorporou nossa passagem ao lecionário dominical, oferecendo-a regularmente para meditação dos fiéis. Essa presença litúrgica garante que o ensinamento de Ben Sira continue a nutrir a consciência cristã, lembrando à Igreja que ela deve manter o olhar fixo nos pobres se quiser permanecer fiel ao seu Senhor.
Mais recentemente, o magistério papal destacou explicitamente este texto. O Papa Francisco, em sua mensagem para o VIII Dia Mundial dos Pobres, em 2024, colocou no centro um versículo semelhante ao nosso: "A oração dos pobres sobe até Deus". Nesta mensagem, o Papa desdobra todas as implicações eclesiológicas e espirituais do ensinamento de Ben Sira, insistindo que "os pobres ocupam um lugar privilegiado no coração de Deus". Ele chega a citar um versículo que não aparece em nosso extrato, mas que ilumina poderosamente seu significado: "Não correm as lágrimas da viúva pelo rosto de Deus?" (Eclo 35,18). Esta imagem comovente revela até que ponto Deus se identifica com o sofrimento dos pobres, a ponto de ser ele próprio afetado por ele em seu ser mais íntimo.
Essa insistência do Papa Francisco está em consonância com toda a doutrina social da Igreja, desenvolvida desde o século XIX. A "opção preferencial pelos pobres", formalizada pelos bispos latino-americanos e adotada pela Igreja universal, encontra uma de suas raízes bíblicas mais profundas em nosso texto do Eclesiástico. Ele afirma que a Igreja só pode ser fiel ao Evangelho se estiver resolutamente ao lado dos pobres e oprimidos, não por filantropia ou ideologia, mas por fidelidade a Deus, que ouve preferencialmente suas orações.
Meditação
Como podemos traduzir o poder transformador desta mensagem bíblica para a nossa vida diária? Aqui estão algumas ideias concretas para incorporar os ensinamentos de Ben Sira sobre a oração dos pobres.
Primeiro passo: Cultive a pobreza interiorComece cada momento de oração com um ato de humildade, reconhecendo diante de Deus sua pobreza fundamental, sua total dependência dEle. Quaisquer que sejam seus recursos materiais, entre na disposição interior dos pobres que nada têm a oferecer, exceto seu coração aberto e sua necessidade. Essa atitude espiritual permite que sua oração penetre as nuvens.
Segundo Passo: Pratique a Perseverança na IntercessãoIdentifique uma situação de injustiça que o afete particularmente — local, nacional ou internacional. Comprometa-se a orar por essa causa diariamente, com a tenacidade dos pobres que "perseveram até que o Altíssimo os veja". Mantenha essa intenção presente em sua oração, mesmo quando nenhuma mudança visível parece estar ocorrendo.
Terceiro passo: realmente ouvir os pobres. Procure oportunidades concretas de conhecer pessoas em situação de pobreza ou exclusão. Mas não se limite a atos de caridade; comprometa-se a ouvir verdadeiramente suas histórias, suas preocupações, sua visão de mundo. Deixe que suas palavras transformem sua oração e suas prioridades.
Passo Quatro: Simplifique sua Oração. Como a oração dos pobres, desprovida de eloquência sofisticada, mas repleta de autenticidade, simplifique suas fórmulas de oração. Privilegie palavras simples, gritos do coração e silêncios habitados, em vez de longas composições teológicas. Redescubra o poder das orações tradicionais, acessíveis a todos, como o Pai-Nosso ou a Ave-Maria.f
Quinto Passo: Entregue sua Vida à JustiçaA oração dos pobres não pode ficar isolada de um compromisso concreto com a justiça. Identifique uma ação concreta – ser voluntário em uma associação, apoiar uma causa, mudar seus hábitos de consumo – que reflita sua solidariedade com os oprimidos. Estabeleça uma conexão explícita entre essa ação e sua oração.
Sexto Passo: Medite na Imparcialidade DivinaExamine regularmente seus próprios preconceitos e favoritismos. Quem você está favorecendo em seus relacionamentos, sua atenção, sua generosidade? Peça a Deus que transforme sua perspectiva para que seja mais parecida com a dEle, que "não discrimina os pobres".
Sétimo Passo: Crie Espaços para Oração InclusivaSe você tem responsabilidades na sua comunidade eclesial, trabalhe para garantir que a liturgia e os momentos de oração reflitam verdadeiramente as preocupações dos pobres. Convide pessoas de diversas origens para falar, formular intenções de oração e compartilhar suas experiências espirituais. Faça da sua comunidade um lugar onde as vozes dos marginalizados possam ser verdadeiramente ouvidas.

Uma revolução espiritual e social
Nossa meditação sobre a passagem de Ben Sira nos leva a uma constatação radical: a oração não é uma atividade piedosa que nos isole das realidades sociais; pelo contrário, é o lugar de onde brota uma força transformadora capaz de perturbar a ordem estabelecida. Quando Deus afirma que ouve preferencialmente a oração dos pobres, proclama uma revolução que diz respeito tanto ao céu quanto à terra.
Esta revolução começa em nossos corações. Ela nos convoca a nos identificarmos com os pobres, a fazermos nossas as suas causas, a nos unirmos à sua oração que atravessa as nuvens. Mas não pode parar por aí: deve se desdobrar em nossas escolhas de vida, em nossos compromissos sociais, em nossas lutas por justiça. A oração dos pobres que se eleva a Deus deve descer à terra na forma de ações concretas que transformem as estruturas de opressão.
A mensagem de Ben Sira ressoa com particular urgência em nosso mundo contemporâneo, marcado por crescentes desigualdades. Diante da indiferença generalizada ao sofrimento dos mais vulneráveis, diante de sistemas econômicos que oprimem os fracos e diante de injustiças estruturais perpetuadas, a afirmação de que Deus ouve as orações dos pobres constitui uma palavra de resistência e esperança. Ela nos assegura que a situação atual não é definitiva, que a justiça de Deus eventualmente se realizará.
Mas essa certeza não nos isenta da ação; pelo contrário, nos impele a fazê-lo. Saber que Deus está do lado dos oprimidos nos impele a fazer o mesmo, a nos tornarmos instrumentos de sua justiça, respostas concretas às orações dos pobres que se elevam a ele. Somos chamados a ser as mãos com as quais Deus enxuga as lágrimas, a voz com a qual pronuncia sua sentença em favor dos justos, a força com a qual traz justiça aos oprimidos.
Esta vocação exige uma conversão profunda. Ela nos pede que renunciemos aos privilégios injustos de que desfrutamos, que questionemos nossos estilos de vida que contribuem para a exploração dos mais fracos, que nos afastemos de nossas preocupações confortáveis e nos deixemos desafiar pelos clamores dos pobres. É um caminho desafiador, mas é o único que nos permite caminhar verdadeiramente com o Deus revelado nas Escrituras.
A imagem da oração que atravessa as nuvens, em última análise, convida-nos à esperança. Nos momentos em que tudo parece perdido, quando a injustiça parece triunfar definitivamente, quando as nossas orações parecem perdidas no silêncio, Ben Sira assegura-nos que a oração autêntica, aquela que nasce de um coração partido pela injustiça, acaba sempre por atingir o seu objetivo. Ela atravessa as nuvens, atravessa distâncias, toca o coração de Deus e desencadeia a sua resposta. Esta certeza não é ingenuidade; é fé num Deus que "não tardará" e que "permanecerá impaciente" até que a justiça seja plenamente cumprida.
Que possamos nos tornar intercessores perseverantes, vozes que se unem à grande sinfonia de orações dos pobres que se elevam a Deus através dos tempos. Que possamos também nos tornar instrumentos da resposta divina, mãos e pés que traduzam na história humana a justiça e a compaixão de Deus pelos menores. Esta é a nossa vocação como cristãos, herdeiros da tradição de Ben Sira e discípulos de Cristo que se fez pobre para nos enriquecer com a sua pobreza.
Prático
Examine seus olhos diariamente sobre as pessoas em situação de pobreza que você encontra, pedindo a Deus que transforme seus preconceitos em reconhecimento de sua dignidade e de sua especial proximidade com Ele.
Passe cinco minutos todos os dias a uma oração perseverante de intercessão por uma situação específica de injustiça, inspirada pela tenacidade dos pobres que rezam até que Deus faça justiça.
Leia e medite em uma passagem da Bíblia a cada semana sobre justiça social e a opção pelos pobres (profetas, evangelhos, epístolas), deixando a Palavra questionar suas escolhas e prioridades de vida.
Comprometa-se com pelo menos uma ação concreta por mês de solidariedade com as pessoas vulneráveis em sua comunidade, fazendo deste compromisso uma extensão natural de sua oração.
Pratique a simplicidade voluntária em uma área da sua vida (alimentação, vestuário, lazer) para cultivar essa pobreza interior que permite que a oração atravesse as nuvens.
Procure ativamente a reunião com pessoas de diferentes origens sociais, criando espaços de diálogo e escuta mútua que enriquecem a compreensão da realidade e alimentam a oração.
Incorpore em sua oração pessoal e comunitária intenções específicas para órfãos, viúvas, oprimidos do nosso tempo, nomeando explicitamente situações de injustiça que requerem intervenção divina.
Referências
Livro de Ben Sira, o Sábio, capítulo 35, versículos 15b-17.20-22a, tradução litúrgica francesa, texto fonte e contexto de composição no século II a.C. em Jerusalém.
Papa Francisco, Mensagem para o 8º Dia Mundial dos Pobres (2024), “A oração dos pobres sobe até Deus”, uma meditação magistral contemporânea sobre o tema de Ben Sira.
Tradição patrística, notadamente São Cipriano de Cartago (século III) e Rábano Mauro (século IX), os primeiros comentaristas cristãos sobre Sirácida na perspectiva da edificação espiritual.
Doutrina Social da Igreja Católica, ensinamento sobre a opção preferencial pelos pobres desenvolvido desde o século XIX e formalizado pelo magistério latino-americano e universal.
Bento XVI, reflexões sobre o fundamento cristológico da opção pelos pobres e seu enraizamento na fé em um Deus que se fez pobre em Cristo.
Carlos Mopsik (tradutor), A Sabedoria de Ben Sira, tradução completa dos fragmentos hebraicos com introdução histórica e filológica, apresentando o contexto oriental e mediterrâneo dos livros de sabedoria.
Pancrácio C. Beentjes (editor), publicação dos manuscritos hebraicos de Sirach (1997) e recursos fotográficos disponíveis em bensira.org para o estudo científico do texto original.scroll.bibletraditions+1
liturgia católica, integração da passagem de Ben Sira no lecionário dominical do Tempo Comum, garantindo sua meditação regular pelas comunidades cristãs.



