Leitura do livro do profeta Daniel.
Eu, Daniel, fiquei profundamente perturbado, pois as visões que tive me deixaram muito incomodado. Aproximei-me de um dos que estavam ao redor do trono e perguntei-lhe o significado de tudo aquilo. Ele me respondeu e revelou a interpretação:
«Essas bestas imensas, em número de quatro, representam quatro reis que surgirão da terra. Mas serão os santos do Altíssimo que receberão a realeza e a manterão por toda a eternidade.»
Então, questionei-o sobre a quarta besta, diferente de todas as outras, essa besta terrivelmente poderosa, com dentes de ferro e garras de bronze, que devorava, despedaçava e pisoteava o que restava. Questionei-o sobre os dez chifres em sua cabeça e sobre aquele chifre que crescia, derrubando outros três à sua frente — aquele chifre com olhos e uma boca que proferia palavras arrogantes — aquele chifre que era mais imponente que os outros. Eu o tinha visto liderando a guerra contra os santos e derrotá-los, até a vinda do Ancião que julgou em favor dos santos do Altíssimo, e chegou o tempo em que os santos tomaram posse do reinado.
A essas perguntas, recebi a resposta: «A quarta besta representa um quarto reino na terra, diferente de todos os outros reinos. Ele devorará toda a terra, a pisará aos pés e a esmagará. Os dez chifres representam dez reis que se levantarão desse reino. Depois se levantará outro rei, diferente dos anteriores, que derrubará três reis. Ele blasfemará contra o Altíssimo, oprimirá os santos do Altíssimo e tentará alterar o calendário das festas e a Lei. Os santos serão entregues em suas mãos por um tempo, tempos e metade de um tempo. Então, o tribunal se assentará, e seu domínio lhe será tirado, para ser destruído e aniquilado para sempre. O reino, o domínio e a grandeza de todos os reinos debaixo do céu foram dados ao povo dos santos do Altíssimo. Seu reino é um reino eterno, e todos os impérios o servirão e lhe obedecerão.»
Quando as feras sucumbirem: recebendo a realeza prometida aos santos do Altíssimo.
Há algo profundamente perturbador neste capítulo de Daniel. Bestas monstruosas emergem do mar, impérios devoram a terra, um chifre arrogante blasfema contra o céu. E, no entanto, no âmago dessa visão de pesadelo, uma promessa irrompe como um trovão: realeza, domínio e poder serão dados ao povo dos santos. Não conquistados pela força. Não vencidos pelas armas. Dados. Isso deveria nos fazer refletir sobre nossa relação com o poder, com a história e com nosso próprio chamado espiritual.
Este texto de Daniel 7 Esta não é uma curiosidade arqueológica reservada a especialistas em literatura apocalíptica judaica. Ela nos fala hoje, a nós que vivemos em um mundo onde os impérios assumem formas novas, mas igualmente vorazes, onde a tentação do poder permanece onipresente, onde a questão do significado da história surge com renovada urgência. Daniel nos oferece uma chave para a compreensão que pode transformar nossa perspectiva sobre o presente e nossa esperança para o futuro.
Começaremos por situar a visão de Daniel em seu contexto histórico e literário para compreendermos seu significado para seus primeiros leitores. Em seguida, analisaremos o cerne da mensagem: essa surpreendente inversão em que a realeza passa das feras para os santos. Exploraremos então três temas principais: a natureza do poder segundo Deus, a identidade desses "santos do Altíssimo" e as implicações concretas para nossas vidas. Recorreremos à tradição para enriquecer nossa compreensão antes de oferecermos caminhos para meditação e aplicações práticas.

Uma visão nascida na fornalha da história.
Para realmente se envolver com este texto, é preciso primeiro estar disposto a ser transportado para outro mundo. Este não é um tratado de teologia abstrata. Somos imersos em uma visão, com todo o seu mistério inerente, simbolismo e intensidade emocional. O próprio Daniel nos diz que sua mente estava "angustiada" e "abalada". Esta não é uma leitura leve e descontraída. É uma experiência que te abala profundamente.
O O livro de Daniel Foi escrito em sua forma final por volta do século II a.C., durante a perseguição de Antíoco IV Epifânio. Este rei selêucida empreendeu a helenização forçada da Judeia, profanando o Templo, proibindo a prática da Torá e perseguindo aqueles que permaneceram fiéis à Aliança. Os "santos do Altíssimo" mencionados no texto são principalmente esses judeus fiéis que arriscaram suas vidas em vez de renunciar à sua fé.
Mas as raízes do texto remontam ainda mais longe. A narrativa ficcional situa Daniel na corte da Babilônia no século VI a.C., durante o Exílio. Essa sobreposição temporal não é acidental. Ela transmite algo essencial: os impérios sucedem-se uns aos outros, suas formas mudam, mas sua dinâmica permanece a mesma. Babilônia, Pérsia, Grécia, Roma — e todos os que viriam depois — compartilham essa mesma tentação de onipotência, essa mesma ambição de devorar o mundo.
A estrutura literária do capítulo 7 é notável. Ela forma uma dobradiça no O livro de DanielIsso marca a transição das narrativas cortesãs (capítulos 1-6) para as visões apocalípticas (capítulos 7-12). Não é coincidência que essa visão inaugural culmine na promessa feita aos santos. Tudo o que se segue no livro será uma meditação sobre essa esperança fundamental.
O gênero apocalíptico, do qual Daniel é um importante representante na Bíblia Hebraica, não é uma literatura de escapismo. É uma literatura de resistência. Quando não se pode mais falar abertamente, fala-se por meio de símbolos. Quando o opressor parece invencível, revela-se (este é o significado da palavra "apocalipse") que seu poder já foi julgado, já foi condenado, já está com os dias contados. As feras podem rugir o quanto quiserem: seu tempo está se esgotando.
O contexto litúrgico deste texto também merece nossa atenção. Na tradição cristã, ele é lido durante as últimas semanas do ano litúrgico, quando a Igreja medita sobre as últimas coisas e a volta de Cristo. Essa leitura não é arbitrária. Ela reconhece neste texto uma mensagem que transcende seu contexto imediato para iluminar nossa própria expectativa do Reino.
Na tradição judaica, esta passagem pertence aos textos que alimentaram a esperança messiânica durante séculos. A figura do "Filho do Homem" que aparece alguns versículos antes (Dn 7(13-14) foi interpretado de muitas maneiras: como uma representação coletiva do povo fiel, uma figura messiânica individual, ou ambos. O próprio Jesus adotaria mais tarde este título, dando-lhe um novo significado, mas permanecendo dentro desta longa tradição de esperança.
A grande reviravolta: quando o poder muda de mãos.
Aqui reside o cerne do nosso texto: uma completa inversão da lógica do poder. Daniel vê quatro bestas terríveis emergirem do mar — símbolos do caos primordial — e exercerem um domínio brutal sobre a terra. Então, subitamente, tudo muda. O Ancião se assenta no trono, a corte é estabelecida e a realeza é transferida para os santos do Altíssimo.
O que imediatamente chama a atenção do espectador é o contraste entre a violência das feras e a aparente passividade dos santos. As feras "impulsionam", "devoram", "dilaceram", "pisoteiam". Seu vocabulário é de predação e destruição. Os santos, por outro lado, "recebem" e "possuem". Eles não se apoderam de nada. Não impõem nada. A realeza lhes é concedida.
Esse paradoxo está no cerne da mensagem. O verdadeiro poder não é adquirido pela força. Ele é recebido como uma dádiva. Isso é exatamente o oposto do que os impérios acreditam. Para eles, o poder é tomado, defendido e expandido por meio da conquista. Para os santos, o poder vem do alto, do Ancião que se assenta em seu trono, daquele cuja realeza é "eterna".
Vamos examinar mais de perto a quarta besta, aquela que fascina e aterroriza Daniel. Ela é "diferente de todas as outras", "terrivelmente poderosa", com "dentes de ferro e garras de bronze". Ela não apenas domina: "devora toda a terra, a pisoteia e a esmaga". Este é o império em todos os seus excessos. Este é o poder que não conhece limites, que quer absorver tudo, padronizar tudo, subjugar tudo.
O chifre que surge em seguida eleva o horror a um nível ainda maior. Ele possui "olhos" — um símbolo de inteligência calculista — e "uma boca que profere palavras delirantes". Ele "profere palavras hostis ao Altíssimo" e "persegue os santos". Ele chega a tentar "mudar as datas das festas e da Lei". Isso não é mais mera dominação política: é uma tentativa de reestruturar o próprio tempo, de reescrever as regras fundamentais da existência, de substituir Deus.
E, no entanto — e é aqui que tudo muda —, essa arrogância é apenas temporária. "Um tempo, tempos e metade de um tempo": uma frase enigmática que diz tudo. O mal tem seus limites. Seu domínio não é eterno. Ele é contado, medido, já em tempo emprestado, mesmo quando parece triunfar.
Então vem o julgamento. O tribunal se reúne. O domínio é "tomado" da besta. Não contestado, negociado, diminuído: tomado. E tudo o que parecia tão poderoso é "destruído e completamente aniquilado". Essa é a verdade sobre os impérios: sua aparente solidez é uma ilusão. Eles desaparecem. Todos eles. Sem exceção.
O que resta é a realeza concedida aos santos. E essa realeza é "eterna". O texto insiste: "todos os impérios o servirão e lhe obedecerão". Não apenas alguns impérios, não apenas os impérios futuros, mas "todos". O equilíbrio de poder é completamente invertido. Aqueles que serviram se tornam aqueles que são servidos. Aqueles que foram oprimidos recebem lealdade universal.

O poder segundo Deus: uma lógica invertida.
A primeira dimensão que precisamos explorar é essa concepção radicalmente diferente de poder que permeia todo o nosso texto. Pois, se a realeza é "conferida" aos santos, é porque não pertence à mesma ordem que a dos animais. Obedece a uma lógica diferente, opera segundo regras diferentes e visa a fins diferentes.
O poder das bestas é um poder de dominação. Exerce-se sobre os outros, contra os outros, à custa dos outros. Divide o mundo em dominantes e dominados, predadores e presas. Alimenta-se do medo e da violência. Conhece apenas uma direção: expansão, acumulação, a devoração de tudo o que lhe resiste.
O poder concedido aos santos é de natureza completamente diferente. Não se trata simplesmente de uma transferência em que os antes dominados se tornam os novos dominantes, reproduzindo os mesmos padrões com outros atores. Não. O que lhes é concedido é uma realeza que participa da própria realeza divina. “Sua realeza é uma realeza eterna”: o possessivo é ambíguo, referindo-se tanto aos santos quanto ao Altíssimo. Isso porque a realeza deles não é separada da de Deus. É a sua manifestação, a sua extensão, o seu reflexo.
Então, como Deus exerce seu reinado? As Escrituras nos mostram constantemente: por meio da justiça, por meio de misericórdiaPor meio do cuidado com os pequeninos e os fracos. O Deus da Bíblia não é um superimperador que governa pela força. Ele é aquele que "derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes", como canta a Bíblia. Casado Em seu Magnificat. Ele é aquele que se revela não no furacão ou no terremoto, mas "no sussurro de uma brisa suave", como Elias descobriu.
Essa realeza paradoxal encontrará sua expressão máxima na figura de Jesus. Aquele que assumirá o título de "Filho do Homem" que Daniel havia contemplado, aquele que afirmará que "toda a autoridade no céu e na terra lhe foi dada", exercerá essa autoridade lavando os pés de seus discípulos, curando-os. os doentesdando as boas-vindas os pescadores, morrendo na cruz. “Os reis das nações as dominam, e os que exercem poder sobre elas se autodenominam benfeitores. Mas contigo não há nada disso.” Esta é a carta de poder segundo Deus.
O que é dado aos santos, portanto, não é uma licença para dominarem por sua vez. É uma participação no modo divino de reinar. É uma responsabilidade, não um privilégio. É um serviço, não uma recompensa. Os santos não recebem a realeza para desfrutar do poder, mas para exercê-lo segundo o coração de Deus.
Isso transforma completamente nossa relação com o poder. Em nossas famílias, comunidades, empresas e sociedades, somos constantemente tentados pelo modelo animalesco: impor, controlar e esmagar tudo o que resiste. A visão de Daniel nos convida a um caminho diferente. O verdadeiro poder não é aquele que é imposto, mas aquele que é dado. Não é aquele que toma, mas aquele que recebe. Não é aquele que domina, mas aquele que serve.
Essa inversão não é simplesmente uma estratégia alternativa, uma técnica de gestão mais eficiente. É uma mudança ontológica, uma transformação do nosso próprio ser. Para exercer o poder segundo a vontade de Deus, é preciso primeiro ser transformado por Deus. É preciso aceitar receber antes de poder dar. É preciso reconhecer a própria fraqueza antes de poder ajudar os outros. É preciso renunciar à lógica animalesca que ainda habita em nós.
Pois este é o segredo que Daniel nos revela: as bestas não são meramente impérios externos. Elas também são forças internas. Essa ganância que quer devorar tudo, essa arrogância que "profere palavras delirantes", essa vontade de poder que tudo atropela em seu caminho — nós as conhecemos por dentro. Receber a realeza dos santos é também aceitar que essas bestas interiores sejam julgadas, destronadas e aniquiladas, para dar lugar a uma outra forma de ser no mundo.
Quem são os santos do Altíssimo?
A segunda dimensão a ser explorada diz respeito à identidade desses misteriosos "santos do Altíssimo". Quem são eles? E, sobretudo: podemos estar entre eles?
A palavra hebraica traduzida como "santos" é qaddishin. Ela não se refere primariamente a indivíduos moralmente perfeitos ou àqueles canonizados por uma autoridade religiosa. Significa "aqueles que são separados", "aqueles que pertencem ao Altíssimo", "aqueles que são consagrados". A santidade, na Bíblia, é menos uma qualidade moral do que um relacionamento. Aquilo que está em relacionamento com o Deus santo é santo. Aqueles que pertencem a Ele são santos.
No contexto imediato de Daniel, os santos se referem ao povo fiel de Israel, aqueles que mantêm a Aliança apesar da perseguição, aqueles que se recusam a se curvar diante dos ídolos, aqueles que observam o sábado e as festas, mesmo correndo o risco de perder a vida. São os Macabeus e seus companheiros, os mártires da fé, todos aqueles que preferiram a morte à apostasia.
Mas o texto também se abre para uma dimensão mais ampla. Esses santos recebem uma realeza que abrange "todos os reinos da terra". Sua vocação não é formar um pequeno grupo separado do resto da humanidade. É ser as primícias de uma nova humanidade, as testemunhas de uma outra possibilidade, os arautos do Reino vindouro.
A tradição cristã vê nos santos do Altíssimo uma figura da Igreja, este povo reunido de todas as nações, judeus e gentios unidos em Cristo. Não uma Igreja triunfalista que dominaria o mundo, mas uma Igreja servidora, uma Igreja peregrina, uma Igreja que carrega em sua carne as marcas da perseguição enquanto já vive a vitória prometida.
O que caracteriza os santos em nosso texto é que eles são perseguidos. O chifre "faz a guerra aos santos e prevalece sobre eles.” Os santos “são entregues ao seu poder”. Isso deveria nos fazer refletir. A santidade, segundo Daniel, não é uma situação confortável. Ela expõe a pessoa à contradição, à hostilidade e ao sofrimento. Os santos não são aqueles que conseguiram se refugiar das feras. São aqueles que confrontam as feras e permanecem firmes.
Essa dimensão de resistência é essencial. Os santos não são passivos, simplesmente esperando que Deus intervenha. Eles estão engajados em uma luta. Rejeitam "palavras hostis ao Altíssimo". Mantêm "as datas das festas e da Lei" que o chifre busca mudar. Opõem-se à mentira do império com a verdade da fé. Sua resistência não é armada — não têm dentes de ferro nem garras de bronze —, mas é real, ativa e corajosa.
E é precisamente essa resistência desarmada que sai vitoriosa. Não por sua própria força — o chifre "prevalece sobre eles" por um tempo — mas pela intervenção do Velho. O julgamento vem do alto. A vitória é dada, não conquistada. Mas é dada àqueles que se mantiveram firmes, àqueles que não capitularam, àqueles que mantiveram sua lealdade apesar de tudo.
Essa conexão entre lealdade O esforço humano e a intervenção divina são cruciais. Isso evita duas armadilhas. A primeira seria o voluntarismo: acreditar que tudo depende dos nossos esforços, da nossa luta, da nossa resistência. A segunda seria o quietismo: acreditar que tudo está predeterminado e que não temos nada a fazer. Daniel nos mostra um caminho do meio: somos chamados a perseverar, a resistir, a permanecer fiéis, mas a vitória final vem somente de Deus.
Quem pode se tornar um santo do Altíssimo? Você. Eu. Qualquer pessoa que escolha pertencer ao Deus vivo em vez dos ídolos deste mundo. Qualquer pessoa que se recuse a se curvar diante das bestas do seu tempo. Qualquer pessoa que mantenha a esperança quando tudo parece perdido. A santidade não é reservada a uma elite espiritual. Ela é oferecida a todos que aceitam receber o que Deus deseja dar.
Já viver como herdeiros do Reino
A terceira dimensão diz respeito às implicações concretas dessa promessa para o nosso dia a dia. Pois, se nos é prometida a realeza, como isso deveria mudar a forma como vivemos aqui e agora?
A primeira consequência é a libertação do medo. As bestas são aterrorizantes. Seu poder parece absoluto. O chifre blasfemo aparenta ser invencível. E, no entanto, seu tempo está se esgotando. Seu domínio tem um fim. Sabendo disso, podemos encará-las de forma diferente. Não ingenuamente, como se não fossem perigosas, mas sem aquele terror paralisante que nos faria renunciar à nossa liberdade interior.
Pense nas situações da sua vida em que você se sente esmagado por forças além do seu controle: um sistema econômico implacável, uma burocracia kafkiana, dinâmicas tóxicas em relacionamentos, vícios que parecem invencíveis. A visão de Daniel não promete que essas bestas desaparecerão amanhã de manhã. Ela afirma que elas não são eternas, que seu poder já foi julgado, que seu fim é certo. Essa certeza pode mudar nossa relação com a opressão. Ela nos permite evitar absolutizar o que é apenas relativo, evitar perpetuar o que é temporário.
A segunda consequência é um senso de responsabilidade. Se a realeza nos está destinada, devemos começar a exercê-la agora, dentro dos limites de nossas circunstâncias presentes. Cada ato de justiça que praticamos, cada palavra de verdade que proferimos, cada gesto de misericórdia que fazemos é um prenúncio do Reino prometido. Não estamos condenados a esperar passivamente. Já podemos viver como cidadãos do mundo vindouro.
Isso se traduz em coisas muito concretas. Em nossa família, exercer a realeza dos santos significa criar um espaço de bondade, perdão e crescimento mútuo. Em nosso trabalho, significa recusar-nos a compactuar com a injustiça, tratar cada pessoa com dignidade e colocar nossas habilidades a serviço do bem comum. Em nosso engajamento cívico, significa trabalhar por uma sociedade mais justa, defender os mais vulneráveis e resistir ao discurso de ódio e à retórica divisiva.
A terceira consequência é a solidariedade com os perseguidos. Os santos de Daniel são "entregues ao poder" do chifre. Eles sofrem perseguição. Ainda hoje, milhões de cristãos são perseguidos por sua fé em todo o mundo. Milhões mais sofrem sob regimes opressivos, em situações de exploração, violência e injustiça. Se pertencemos ao povo dos santos, a causa deles é a nossa causa. A luta deles é a nossa luta. Não podemos simplesmente esperar pela nossa própria coroação; devemos estar ao lado daqueles que estão sofrendo agora.
A quarta consequência é o distanciamento das formas atuais de poder. Se a verdadeira realeza é aquela que vem de Deus, as realezas terrenas perdem seu caráter absoluto. Podemos respeitá-las e colaborar com elas quando servem. o bem comumMas não lhes devemos lealdade incondicional. “É preciso obedecer a Deus antes que aos homens”, como diriam os apóstolos. Essa relativização do poder político é um dos legados mais preciosos da tradição bíblica. Ela fundamenta a própria possibilidade de crítica, resistência e desobediência civil quando as circunstâncias o exigem.
A quinta consequência é a paciência ativa. O Reino foi prometido, mas ainda não se concretizou plenamente. Vivemos no meio-termo, entre a promessa e o seu cumprimento. Essa situação exige uma paciência que não é resignação, mas perseverança. Semeamos sementes cuja colheita talvez não vejamos. Lançamos os alicerces sobre os quais outros construirão. Participamos de uma obra que nos transcende infinitamente. Essa consciência pode nos libertar da obsessão por resultados imediatos e nos dar a longa paciência dos construtores da catedral.

Ecos na tradição
A visão de Daniel continua a ressoar ao longo dos séculos, alimentando as reflexões de teólogos, as orações de místicos e as esperanças de comunidades perseguidas. Alguns ecos dessa rica tradição merecem ser mencionados.
Os Padres da Igreja interpretaram este texto como uma profecia de Cristo e da sua Igreja. Para Irineu de Lyon, no século II, as quatro bestas representam a sucessão de impérios pagãos, e os santos do Altíssimo prefiguram a comunidade cristã chamada a reinar com Cristo. Para Hipólito de Roma, o chifre arrogante anuncia o Anticristo, a figura da oposição final a Deus, que será derrotada no fim dos tempos.
Agostinho de Hipona, em sua monumental obra A Cidade de Deus, desenvolveu uma teologia da história inspirada em Daniel. A história da humanidade é a arena de um confronto entre duas cidades: a cidade terrena, fundada no amor-próprio a ponto de desprezar a Deus, e a cidade celestial, fundada no amor a Deus a ponto de desprezar a si mesma. Impérios desaparecem, com sua glória e sua violência, mas a Cidade de Deus permanece. Essa visão marcou profundamente a consciência ocidental, oferecendo uma estrutura para pensar sobre catástrofes históricas — a queda de Roma, as invasões bárbaras e muitas outras provações ainda por vir.
Na Idade Média, o abade Joaquim de Fiore propôs uma leitura trinitária da história, discernindo em Daniel e o Apocalipse Os sinais de uma vindoura Era do Espírito, na qual a realeza dos santos se concretizaria plenamente. Suas ideias, por vezes controversas, impulsionaram inúmeros movimentos de reforma e renovação espiritual.
Na espiritualidade carmelita, João da Cruz Ele meditou sobre a passagem das bestas interiores — esses apegos desordenados que nos tiranizam — para a liberdade dos filhos de Deus. A noite escura da alma, essa provação purificadora, é como o tempo em que o chifre parece triunfar. Mas a aurora está chegando, e com ela a realeza prometida.
A tradição litúrgica situa este texto nas últimas semanas do ano, quando a Igreja contempla o fim dos tempos e a vinda de Cristo em glória. Esta escolha não é insignificante. Convida os fiéis a relerem a sua própria história à luz da promessa, a discernirem as loucuras do seu tempo e a manterem a esperança apesar das aparências em contrário.
Mais recentemente, teólogos da libertação encontraram em Daniel um recurso para refletir sobre a resistência às estruturas de opressão. O Deus de Daniel é um Deus que toma o partido das vítimas, que julga impérios, que promete justiça aos pobres. Essa interpretação, por vezes contestada, alimentou o compromisso de muitos cristãos com os mais vulneráveis.
A figura dos santos do Altíssimo continua a ganhar forma na história. Dietrich Bonhoeffer, um combatente da resistência contra o nazismo, viveu essa santidade até o martírio. Oscar Romero, arcebispo de San Salvador, foi assassinado por defender os camponeses oprimidos. Milhões de testemunhas anônimas, de todas as crenças e culturas, personificam essa fidelidade corajosa que se recusa a ceder às forças de seu tempo.
Caminhando com Daniel
Como podemos permitir que este texto atue dentro de nós, transforme nossa perspectiva e renove nossa esperança? Aqui estão algumas sugestões para apropriação pessoal.
Primeiro passo: reserve um tempo para contemplar as feras. Não com complacência, mas com lucidez. Quais são as forças que, em nosso mundo e em nossas vidas, "devoram, destroem e pisoteiam"? Que sistemas, que estruturas, que dinâmicas exercem essa brutal dominação? E, acima de tudo: que feras ainda habitam dentro de nós — essa ganância, essa vontade de poder, esse medo que às vezes nos transforma em opressores? Essa contemplação não tem o objetivo de nos deprimir, mas de nomear aquilo contra o que lutamos.
Segundo passo: eleve os olhos para o trono. O Ancião está sentado. O tribunal está reunido. O julgamento já foi proferido. No próprio âmago do caos, uma presença pacífica sustenta a soberania do bem. Contemplar essa presença é recuperar o senso de proporção. As bestas são grandes, mas Deus é maior. O poder delas é real, mas o poder dEle é supremo.
Terceiro passo: aceitar ser "libertado" por um tempo. O chifre prevalece sobre os santos. Esta fase é dolorosa, mas necessária. Ela testa a força da nossa fé. Ela nos liberta da ilusão de que poderíamos ser poupados da provação. Ela nos une a todos aqueles que sofrem por justiça. Aceitar essa vulnerabilidade significa rejeitar a fantasia da onipotência, que é precisamente o pecado das bestas.
Quarto passo: mantenha em lealdadeDurante este "tempo, tempos e metade de um tempo", o que devemos fazer? Manter. Preservar. Perseverar. Continuar a celebrar as festas que o corno procura suprimir. Continuar a viver de acordo com a Lei que ele procura mudar. Continuar a proclamar a verdade que ele procura sufocar. Esta fidelidade silenciosa já é uma vitória.
Quinto passo: receber a realeza. Não tomá-la para si. Não merecê-la. Recebê-la como uma dádiva. Isso implica uma transformação da nossa relação com o poder. Enquanto quisermos dominar, não podemos receber. É ao aceitarmos que não somos os mestres que nos tornamos capazes de reinar — com um reinado que é serviço, dádiva e amor.
Sexto passo: exercer essa realeza agora mesmo. Nas pequenas coisas do dia a dia. Em nossos relacionamentos. Em nossos compromissos. Em todos os lugares onde pudermos promover um pouco de justiça, paz e verdade. O Reino não é apenas para amanhã. Ele começa hoje, em cada ação que carrega a sua marca.
Sétimo passo: espere com confiança. O resultado não está em nossas mãos. A vitória final vem de Deus. Essa espera não é passiva: ela está repleta de tudo o que semeamos. Mas também é humilde: reconhece que a realização está além do nosso controle. Esperar dessa forma é viver na esperança.
O poder transformador de uma promessa
Ao final desta jornada, o que devemos levar conosco? Em primeiro lugar: a visão de Daniel não é simplesmente um documento histórico que testemunha as esperanças de um povo oprimido há mais de dois mil anos. É uma mensagem viva que continua a nos desafiar, a nos provocar, a nos transformar.
Ela nos diz que a história tem significado. Não um significado óbvio, legível na superfície dos acontecimentos, mas um significado profundo e oculto, que a fé pode discernir. Impérios caem. Bestas sucumbem. O que resta é a realeza concedida aos santos. Essa convicção pode nos sustentar nas provações mais árduas.
Ela também nos diz que somos chamados a uma vocação extraordinária. Não para sermos submetidos à história, mas para nos tornarmos seus protagonistas. Não para nos resignarmos ao reinado das feras, mas para inaugurarmos um novo reinado. Não para imitarmos a violência dos poderosos, mas para exercermos um poder de ordem completamente diferente – o poder do amor, do serviço e da doação.
Ela finalmente nos diz que essa vocação faz parte de uma comunidade e de um compromisso de longo prazo. Não somos indivíduos isolados em busca de nossa própria salvação pessoal. Somos o "povo dos santos do Altíssimo", herdeiros de uma longa história de fidelidade, responsáveis por transmitir a esperança às futuras gerações.
Diante das bestas do nosso tempo – sejam elas sistemas econômicos destrutivos, regimes políticos opressivos, ideologias desumanizantes ou nossos próprios demônios interiores – a visão de Daniel nos convida a um movimento tríplice: lucidez para reconhecê-las, resistência para enfrentá-las e confiança para saber que seu poder não é a última palavra.
Já podemos viver como herdeiros do Reino. Não num triunfalismo ingênuo que ignora a realidade do sofrimento e do mal, mas naquela esperança ativa que transforma o presente à luz do futuro prometido. Cada ato de justiça, cada palavra de verdade, cada gesto de compaixão é uma pedra colocada nos alicerces do mundo vindouro.
Realeza, domínio e poder são concedidos ao povo dos santos do Altíssimo. Essa promessa aguarda apenas o nosso "sim" para começar a se cumprir — em nós, por meio de nós, às vezes apesar de nós, mas nunca sem nós.
Tome uma atitude
• Identificar um animal Esta semana, nomeie uma força opressora em sua vida ou ambiente e pense em uma maneira concreta de resistir a ela.
• Praticando o poder de serviço Escolha uma situação em que você tenha autoridade e exerça-a deliberadamente como um serviço, e não como uma forma de dominação.
• Junte-se aos perseguidos Saiba mais sobre cristãos perseguidos hoje (ou outros grupos oprimidos) e se envolver de forma concreta com eles – oração, doação, defesa.
• Meditar Daniel 7 Dedique quinze minutos por dia, durante uma semana, para reler este texto lentamente, deixando que as imagens atuem dentro de você.
• Celebre apesar de tudo : manter fielmente um prática espiritual (oração, Eucaristia, Sábado) como um ato de resistência contra as forças que querem nos separar de Deus.
• Compartilhando esperança Conte a alguém por que você permanece confiante apesar das dificuldades – essa palavra pode ser uma luz para os outros.
• Examine seus próprios animais Em um exame de consciência regular, identifique as dinâmicas de dominação que residem em seu coração e confie-as a misericórdia divino.
Referências
– Daniel 715-27 (tradução litúrgica) – Irineu de Lyon, Contra as heresiasLivro V – Agostinho de Hipona, A Cidade de Deus, livros XVIII-XX – João da Cruz, A Ascensão do Carmelo E A Noite Escura – John J. Collins, Daniel: Um Comentário sobre o Livro de Daniel (Hermeneia) – Jacques Ellul, Apocalipse: Arquitetura em Movimento – Gustavo Gutiérrez, Teologia da Libertação


