“Somos estrangeiros em nossa própria terra”: o lento desaparecimento dos cristãos sírios

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Após quatorze anos de guerra civil, a comunidade cristã síria perdeu quase 80 milhões de membros. Presos entre a violência sectária, a insegurança crônica e a desilusão com o novo regime islâmico, os que restam oscilam entre uma frágil esperança e a tentação do exílio permanente. Um relatório alarmante e depoimentos comoventes pintam o retrato de uma comunidade à beira da extinção.

Há números que falam mais alto do que qualquer discurso. Em 2011, quando as primeiras manifestações da "Primavera Árabe" abalaram o mundo, SíriaNo passado, havia quase dois milhões de cristãos neste país, o berço do cristianismo. Hoje, segundo as estimativas mais recentes, restam apenas entre 300.000 e 500.000, uma queda abrupta de mais de 75%. Essa hemorragia demográfica, sem dúvida a mais brutal da história moderna dos cristãos orientais, ameaça apagar uma presença que abrange dois milênios.

Pois foi de fato em Damasco que Saulo de Tarso se converteu e se tornou São Paulo. Foi em Síria que os discípulos de Cristo foram chamados pela primeira vez de "cristãos", em AntioquiaHá quase dois mil anos, esta terra foi o berço de algumas das mais antigas comunidades cristãs do mundo, que ainda falavam aramaico, a língua do próprio Cristo. Hoje, este berço do cristianismo poderá em breve existir apenas nos livros de história.

Como chegamos a esta situação? Para entender, precisamos mergulhar em uma guerra que destruiu tudo em seu caminho: cidades, a economia, o tecido social e, com eles, as esperanças de milhões de sírios, de todas as origens religiosas. Mas também precisamos confrontar o que aconteceu desde a queda do regime de Assad, em dezembro de 2024, e as esperanças frustradas de uma comunidade que acreditava poder virar a página.

O colapso de uma comunidade milenar

Do mosaico confessional ao generalismo "cada um por si"

Antes a guerra, lá Síria assemelhava-se a um mosaico confessional único no Oriente Médio. cristãos Eles representavam entre 8 e 10% da população, distribuídos por uma dúzia de denominações diferentes: ortodoxos gregos (a mais numerosa, com cerca de 170.000 fiéis), greco-católicos melquitas (200.000), ortodoxos e católicos siríacos, gregorianos e católicos armênios, maronitas, caldeus, assírios, latinos, protestantes… Essa fascinante diversidade testemunhava uma história rica e complexa, na qual cada comunidade conseguiu preservar suas tradições enquanto participava da vida comum do país.

Essa coexistência, por mais imperfeita que tenha sido sob o regime autoritário de Assad, garantiu, no entanto, uma certa tranquilidade. cristãos Eles dirigiam escolas renomadas, hospitais de alta qualidade e clínicas abertas a todos, independentemente da religião. Ocupavam cargos na administração, no comércio e nas profissões liberais. Sua presença era tão intrínseca à paisagem síria quanto as antigas pedras de Aleppo ou os jardins de Damasco. Eram figuras essenciais na vida econômica e social, pontes naturais entre o Oriente e o Ocidente.

As principais cidades sírias carregavam a marca dessa presença cristã: o bairro cristão de Bab Touma na cidade velha de Damasco, as catedrais e os souks de Aleppo, os antigos mosteiros de Maaloula onde o aramaico ainda é falado, o Vale dos Cristãos (Wadi al-Nassara) com suas aldeias agarradas às colinas perto de Homs. Cada pedra, cada campanário, cada canto litúrgico testemunhava essa presença profundamente enraizada.

Então tudo mudou. Quando os protestos pacíficos de 2011 se transformaram em uma guerra civil, cristãos Eles se viram encurralados. De um lado, um regime brutal que explorava o medo deles para se apresentar como protetor das minorias, usando-as como álibi para seu suposto laicismo. Do outro, grupos rebeldes cada vez mais dominados por movimentos islâmicos radicais que os viam como "cruzados" ou cúmplices do regime.

A realidade, claro, era mais complexa. Muitos cristãos não apoiavam nem o regime nem os rebeldes, preferindo manter-se afastados de um conflito que não lhes dizia respeito. Alguns, principalmente entre os jovens, chegaram a juntar-se à oposição nos primeiros meses, sonhando com um futuro melhor. Síria democrática e pluralista. Mas a ascensão de grupos jihadistas, a chegada de combatentes estrangeiros e a radicalização do conflito rapidamente tornaram essa posição insustentável.

O resultado, como podem imaginar, foi um êxodo em massa. Em Aleppo, a segunda maior cidade do país e outrora o coração pulsante do cristianismo sírio, a população cristã diminuiu de 150.000 para... a guerra Hoje, esse número cai para menos de 25.000, dos quais apenas 4.000 têm entre 18 e 30 anos. Em Homs, a situação é ainda pior: os bairros cristãos foram devastados e seus habitantes dispersos. Em algumas áreas que caíram nas mãos do Estado Islâmico, como Raqqa e Deir ez-Zor, a presença cristã foi simplesmente erradicada, e os moradores tiveram que escolher entre a conversão, a partida imediata ou a morte.

Os números de um desastre previsto

Os dados são impressionantes, quase irreais. Segundo o Cardeal Mario Zenari, núncio apostólico em Damasco desde 2008 e único diplomata do Vaticano não tendo jamais abandonado seu posto durante todo o conflito, cristãos que, pouco antes do conflito, ainda representavam 6.130 pessoas da população síria, hoje somam apenas 2.130. Uma queda de dois terços em apenas quinze anos.

Para mensurar a dimensão do desastre, precisamos voltar no tempo. No final da Segunda Guerra Mundial, cristãos Eles representavam 25% da população síria, ou cerca de três milhões de pessoas de um total de 12 milhões de habitantes. Esse declínio gradual, inicialmente lento e depois acelerado, já refletia uma dinâmica demográfica desfavorável: baixa taxa de natalidade, emigração econômica para o Ocidente e ascensão do nacionalismo árabe.

Mas nada havia preparado a comunidade para a hemorragia causada por a guerra civil. Segundo o bispo caldeu de Aleppo, Dom Antoine Audo, metade dos 1,5 milhão de cristãos presentes em 2011 deixou o país durante os primeiros anos do conflito. E o movimento nunca parou desde então. Estima-se que somente entre março de 2011 e o final de 2012, 260 mil cristãos sírios buscaram refúgio na Síria. Líbano vizinho, já economicamente esgotado.

Outros juntaram-se à diáspora na Europa, particularmente em Alemanha e na Suécia, na América do Norte ou na Austrália. Muitos nunca mais voltarão. Pois a emigração cristã tem esta característica particular: raramente é temporária. As famílias partem com a ideia de recomeçar a vida noutro lugar, de permitir que os filhos cresçam em segurança, de ter um futuro não marcado por bombardeamentos, escassez e medo.

“Todas as famílias perderam um de seus membros”, resume Ibrahim, um morador de Aleppo na casa dos trinta anos, entrevistado pela ONG Portas Abertas. A guerra "Reacendeu o ódio latente entre cristãos e muçulmanos. Vizinhos se tornaram inimigos e, em algumas áreas, como Raqqa, toda a presença cristã está desaparecendo." Seu testemunho, coletado após dez anos de guerra, soa como um grito de alarme.

Os que permanecem: entre a resiliência e a exaustão

Ainda assim, alguns resistem. Movidos por um profundo apego à sua terra ancestral, por uma forte convicção religiosa, por uma incapacidade prática de partir, ou simplesmente porque se recusam a ceder ao medo. Esses obstinados formam o último bastião contra o desaparecimento completo de uma presença que existe há dois mil anos.

Organizações como a L'Œuvre d'Orient, que trabalha com cristãos no Oriente Médio há mais de 160 anos e está presente em 23 países, buscam capacitá-los para que permaneçam em suas comunidades. Por meio de projetos como os "Centros da Esperança" em Aleppo, Homs e Damasco, oferecem microcrédito sem juros para ajudar as famílias a retomarem suas atividades econômicas e reconquistarem sua independência financeira. O objetivo é romper o ciclo vicioso de dependência.

“O projeto visa ajudar famílias cristãs a se tornarem financeiramente independentes, incentivando-as a permanecer em seu país e contribuir para a vida econômica da nação”, explica Safir Salim, coordenador do programa Hope Center. SíriaA abordagem é pragmática: em vez de assistência pontual, oferece as ferramentas para recuperar a dignidade. Um cabeleireiro que pode reabrir seu salão, um ourives que pode retornar à sua oficina, um taxista que finalmente adquire seu próprio veículo depois de anos entregando metade de seus ganhos ao proprietário.

Vincent Gelot, diretor da Œuvre d'Orient para o Síria e o Líbano, percorre regularmente as estradas esburacadas do país para encontrar essas comunidades carentes. “O Síria "É um país devastado", testemunha ele. "É um país que suportou mais de 50 anos de ditadura, 14 anos de guerras horríveis que destruíram completamente o país, suas cidades, seus serviços públicos." Sua avaliação é inequívoca: as cicatrizes são visíveis em todos os lugares e, além da destruição material, é o próprio tecido social que foi dilacerado.

Esses esforços humanitários, no entanto, são prejudicados por uma realidade econômica catastrófica. Mais de 95% da população síria vive agora abaixo da linha da pobreza. pobrezaA inflação tornou os salários irrisórios. A escassez de eletricidade — que às vezes dura apenas duas horas por dia —, combustível e itens de primeira necessidade pontuam um cotidiano exaustivo. Filas para comprar pão podem durar até cinco horas. Nessas condições, até mesmo os mais determinados acabam duvidando da sua capacidade de resistir.

A queda de Assad e as esperanças frustradas

Dezembro de 2024: O fim de um regime, o início das incertezas.

Em 8 de dezembro de 2024, o mundo tomou conhecimento, com espanto, da queda de Bashar al-Assad, após uma ofensiva relâmpago liderada por uma coalizão de grupos rebeldes dominada pelo Hayat Tahrir al-Sham (HTS). Em apenas doze dias, o regime desmoronou como um castelo de cartas, com o ditador fugindo para a Rússia, onde recebeu asilo político.

Para muitos sírios, foi um momento de intensa esperança. O fim de cinquenta e quatro anos da ditadura de Assad, a perspectiva de finalmente virar a página de um conflito devastador que deixou entre 300 mil e 500 mil mortos, 1,5 milhão de feridos, 5,6 milhões de refugiados e 6,2 milhões de deslocados internos. Imagens de prisioneiros libertados das prisões do regime, os relatos horríveis que emergiam dos centros de tortura, confirmaram o que muitos já sabiam: o regime de Assad era uma máquina de matar.

Mas para cristãosNão havia tempo para euforia. Afinal, quem eram esses novos senhores de Damasco que entraram na grande mesquita dos Omíadas como vitoriosos?

Ahmed al-Charaa – conhecido pelo seu nome de guerra «Abu Mohammed al-Julani» – tinha um passado particularmente problemático. Ele esteve envolvido com a Al-Qaeda no Iraque no início dos anos 2000, após a invasão americana, e foi encarcerado na sinistra prisão de Al-Qaeda. prisão Originário de Abu Ghraib, onde conviveu com outros futuros líderes jihadistas, fundador da Frente al-Nusra (braço oficial sírio da Al-Qaeda) em 2012, é considerado há muito tempo um terrorista pelos Estados Unidos, pela ONU, pela União Europeia e até mesmo pela Rússia, com uma recompensa de 10 milhões de dólares por sua captura.

Sem dúvida, ele havia cultivado cuidadosamente sua imagem nos últimos anos, trocando o uniforme de combate por terno e gravata, a barba espessa de combatente pela barba bem aparada de um notável respeitável. Em 2016, rompeu oficialmente com a Al-Qaeda e renomeou seu movimento para Hayat Tahrir al-Sham. Governou a região de Idlib, no noroeste da Síria, com mão de ferro, mas sem impor uma aplicação excessivamente rigorosa da lei islâmica (Sharia), concedendo relativa liberdade de culto a cristãos e drusos. Mas será que ele era realmente confiável?

“Tínhamos esperança quando a queda de al-Assad foi confirmada”, diz Wakil, um cristão sírio entrevistado pela organização Christian Solidarity International. Mas, muito rapidamente, sinais preocupantes se multiplicaram, transformando a esperança cautelosa em uma profunda ansiedade.

Desde os primeiros dias, foram relatados incidentes: árvores de Natal incendiadas por combatentes mascarados em Souqaylabiya, perto de Hama, intimidação em bairros cristãos e pregação islâmica agressiva. O novo governo rapidamente condenou esses excessos e prometeu processar os perpetradores — descritos como "não-sírios" —, mas o estrago já estava feito. A confiança, já frágil, começou a ruir.

Março de 2025: O massacre das minorias

No início de março de 2025, a situação deteriorou-se drasticamente. Nas regiões costeiras predominantemente alauítas — a comunidade xiita da qual se origina o clã Assad — irrompeu uma violência de extrema brutalidade. O que começou como uma repressão contra "simpatizantes do regime" transformou-se em massacres sectários de proporções aterradoras.

Em 6 de março, supostos apoiadores do antigo regime atacaram as forças de segurança na região de Latakia. A resposta foi desproporcional e indiscriminada. Em três dias, mais de mil civis foram mortos, principalmente alauítas, mas também cristãos apanhados no meio da violência. Combatentes leais ao governo de transição entoavam slogans sectários arrepiantes: "São porcos alauítas!". Execuções sumárias se multiplicaram nas aldeias. Famílias inteiras foram massacradas. Dezenas de milhares de pessoas fugiram para outras regiões.

Em Latakia, uma grande cidade portuária cosmopolita, cristãos Eles se barricaram em suas casas, aterrorizados. "Estamos em casa desde o início da escalada do conflito e barricamos nossas portas com medo da entrada de combatentes estrangeiros", disse um morador à AFP, falando sob condição de anonimato por medo de represálias. Jihadistas não sírios, acusados de participar dos massacres, ameaçaram abertamente minorias em vídeos que circularam nas redes sociais.

O Patriarca Ortodoxo de Antioquia, João X, fez um apelo solene ao presidente interino Ahmad al-Sharaa durante sua homilia de domingo em Damasco: “Parem os massacres! As áreas visadas eram alauítas e cristãs. Muitos cristãos inocentes também foram mortos.” A Igreja, geralmente cautelosa em seus pronunciamentos políticos, rompeu com sua reserva para expressar sua indignação.

O trauma foi imenso e duradouro. “Agora estou convencida de que emigrar é a única solução”, confidenciou Roueida, uma cristã de 36 anos contatada por telefone. “Sentimos que ninguém nos protege.” Gabriel, um artesão de 37 anos, fez a mesma constatação amarga: “Não me sinto seguro em relação ao meu futuro e não me atrevo a casar e ter filhos aqui. Há dez anos, tive a oportunidade de partir para o exterior.” Canadá"Mas eu pensei que a situação melhoraria. Hoje, lamento profundamente não ter aproveitado a oportunidade."

A Constituição Islâmica: a institucionalização da exclusão

Como que para reforçar a mensagem, em 13 de março de 2025 – exatamente um dia após os massacres na costa – Ahmed al-Charaa assinou uma nova constituição interina para o país. Síria, que deverá permanecer em vigor por cinco anos. Um texto que estabelece a lei islâmica (sharia) como a "fonte primária da legislação" e estipula que o chefe de Estado deve ser um muçulmano sunita.

Para as minorias — curdos, drusos, alauítas, cristãos — foi um despertar brutal. Certamente, o texto prometia "preservar os direitos de todos os grupos religiosos e étnicos", e alguns ministros de grupos minoritários foram nomeados para o governo de transição: um cristão, um druso, um curdo e um alauíta. Mas como acreditar nessas promessas inclusivas quando a lei fundamental institucionaliza explicitamente uma hierarquia confessional?

“Os sírios querem uma constituição laica que dê a cada cidadão a liberdade de viver sem interferência da religião ou da lei islâmica”, diz Aliyah, uma alauíta de 44 anos de Jableh. Ela aponta uma cruel ironia: “Ao contrário da opinião popular, os alauítas não gozavam de privilégios sob o regime de Assad. Como a maioria dos sírios, sofremos as consequências de seu monopólio do poder. Agora, temos que escolher entre morrer de fome ou sermos mortos por causa de nossa religião”. Mas esse claramente não é o caminho que a “nova” constituição está trilhando. Síria »".

A cada dia, sinais preocupantes de intolerância religiosa se multiplicam: garrafas de álcool quebradas em lojas, segregação de homens e mulheres no transporte público, cartazes incentivando estudantes a usar o véu integral, pregação do Islã em bairros cristãos, destruição de cruzes em túmulos. "É verdade que reagimos imediatamente a todos esses incidentes", reconhece Wakil, "mas as minorias estão genuinamente com medo. Não sabemos aonde tudo isso vai dar."

O ataque de junho de 2025: o golpe final?

O Domingo Sangrento da Igreja de Mar Elias

Em 22 de junho de 2025, no final da tarde, enquanto os fiéis da Igreja Ortodoxa Grega Mar Elias (Santo Elias), no bairro de Dwelaa, nos subúrbios ao sul de Damasco, participavam da liturgia da noite de domingo, o impensável aconteceu. Um momento de reflexão e oração transformou-se em um banho de sangue.

Um homem armado abriu fogo do lado de fora da igreja e, em seguida, entrou em meio a gritos e pânico. Fiéis corajosos tentaram detê-lo e subjugá-lo. Foi em vão: ele detonou o cinto de explosivos que usava sob as roupas.

O saldo foi horrível: 25 mortos, mais de 60 feridos, muitos dos quais sofrerão consequências para o resto da vida. Imagens insuportáveis circularam pelo mundo: destroços de madeira e ícones sagrados espalhados pelo chão coberto de sangue, famílias gritando de angústia enquanto procuravam por seus entes queridos perdidos sob os escombros. Uma mãe, procurando desesperadamente por seu filho, cujo telefone permanecia em silêncio, disse aos repórteres: "Tenho medo de nunca mais ouvir sua voz."

O Ministério do Interior sírio atribuiu rapidamente o ataque ao Estado Islâmico (ISIS), afirmando que o homem-bomba era "afiliado ao grupo terrorista". Foi o primeiro ataque suicida na capital síria desde a queda de Assad e o mais letal contra a Síria. cristãos Desde… 1860, o ano dos massacres que ensanguentaram o Monte Líbano e Damasco sob o Império Otomano.

Sim, você leu certo: desde o massacre de 1860, em um contexto histórico completamente diferente, nunca cristãos de Síria jamais havia sofrido um massacre como aquele em um local de culto. Nem mesmo durante os piores anos de a guerra A sociedade civil, mesmo durante as atrocidades do Estado Islâmico, nunca viu uma igreja ser alvo de tamanha violência mortal dentro de seus muros.

A ira dos patriarcas

No funeral solene, realizado dois dias depois na Igreja da Santa Cruz em Damasco, o Patriarca Ortodoxo Grego de Antioquia e de Todo o Oriente, João X (Youhanna X), não poupou palavras. Dirigindo-se diretamente ao Presidente Ahmad al-Sharaa, declarou com uma raiva mal contida: “Não podemos aceitar que isto aconteça durante a revolução e sob a sua autoridade. Ontem, o senhor ofereceu as suas condolências por telefone ao vigário patriarcal. Isso não basta.”

O patriarca insistiu veementemente: "O governo tem total responsabilidade" pela proteção dos cristãos. Ele condenou o que chamou de "massacre inaceitável". Foi uma mensagem de rara firmeza dirigida a um governo que claramente enfrenta dificuldades para garantir a segurança das minorias, apesar de suas repetidas promessas.

No VaticanoA consternação foi igualmente profunda. O Cardeal Claudio Gugerotti, Prefeito do Dicastério para as Igrejas Orientais e diplomata experiente da Santa Sé, expressou seus maiores temores: “Infelizmente, temo que não possamos nem imaginar o que poderá acontecer nos próximos dias. A única certeza é que tal massacre de cristãos significaria um aumento de dez vezes no êxodo de cristãos dos países do Oriente.” Médio Oriente. »

Em um tom ainda mais solene, o cardeal acrescentou: “Diante do que aconteceu, expressar proximidade é insuficiente. Hoje, dizemos que estamos com vocês. Naquela igreja em Damasco, eles também nos mataram.” Essas palavras, proferidas por um prelado geralmente reservado, transmitiram toda a gravidade do momento.

O Papa Leão XIVDurante a audiência geral de 25 de junho, ele condenou o "ataque hediondo" perpetrado contra a comunidade ortodoxa grega e apelou à comunidade internacional para que não "desviasse o olhar" deste país martirizado. Esta exortação ressoou como um apelo à responsabilidade coletiva.

Após o ataque: o medo como companheiro diário

Nas semanas e meses que se seguiram ao ataque em Mar Elias, o trauma enraizou-se profundamente na comunidade cristã. As medidas de segurança foram reforçadas nas entradas das igrejas, com voluntários e forças governamentais encarregados de revistar os fiéis. Mas, paradoxalmente, essas medidas visíveis intensificaram a sensação de insegurança em vez de a dissipar.

“As igrejas eram lugares de paz e segurança, refúgios de reflexão”, testemunha o Irmão Firas Lutfi, pároco da comunidade latina de São Paulo em Damasco, cuja paróquia fica perto do local do massacre. “Agora, elas são vistas como lugares perigosos, alvos potenciais. Os fiéis vivem em pânico; mesmo aqueles que não estavam na igreja naquele dia estão traumatizados. Estamos vendo uma queda significativa na frequência às missas em todo o país.”

Em 13 de julho, uma tentativa de atentado foi frustrada por pouco em frente a uma igreja maronita, também dedicada a Mar Elias (Santo Elias), na vila de Al-Kharibat, perto de Tartous. Um carro-bomba foi detectado antes de explodir, graças à vigilância dos moradores e das forças de segurança. Isso representou um grande alívio, mas também comprovou que a ameaça permanece sempre presente e que cristãos continuam sendo alvos.

Em Aleppo, o irmão Bahjat Karakach, sacerdote latino da cidade, testemunha a mudança de atmosfera: "As medidas de segurança em nossas igrejas, as revistas, as portas fechadas, o medo de ataques... Tudo isso cria uma constante sensação de insegurança." Um resultado concreto: a Igreja Latina reduziu significativamente suas atividades pastorais. Os acampamentos de verão anuais para crianças e jovens, um evento muito aguardado durante o verão, foram simplesmente cancelados.

O bispo latino de SíriaA bispa Hanna Jallouf, franciscana como o irmão Bahjat, resumiu a situação com números impressionantes: "Antes do ataque, aproximadamente 50% das famílias cristãs consideravam emigrar a curto ou longo prazo. Hoje, esse número chegou a 90%." Nove em cada dez famílias pensam em partir: a constatação é estarrecedora.

“Não há nada pior do que viver num lugar onde você não se sente seguro”, disse Jenny Haddad, uma funcionária pública de 21 anos que acabara de perder o pai no atentado, a um correspondente da AFP que cobria o funeral. “Não quero mais ficar aqui. A morte nos cerca por todos os lados. Sabíamos que nossa hora chegaria.” Essas foram palavras terríveis de uma jovem que deveria ter toda a vida pela frente.

Em direção a um desaparecimento programado?

Especialistas e observadores são unanimemente pessimistas quanto ao futuro da presença cristã em SíriaFabrice Balanche, geógrafo e diretor de pesquisa da Universidade de Lyon, especialista reconhecido em geopolítica síria há décadas, observa um padrão tristemente familiar: "Como visto no passado no Egito ou no Iraque, todo massacre em uma igreja é seguido por um êxodo cristão. Famílias partem, especialmente os jovens, e nunca mais voltam."

O exemplo iraquiano está na mente de todos e assombra as noites dos cristãos sírios. Após a queda de Saddam Hussein em 2003 e a invasão americana, cristãos A população do Iraque, que chegava a 1,5 milhão de habitantes, foi reduzida para menos de 400 mil devido à perseguição, ao terrorismo (principalmente da Al-Qaeda e, posteriormente, do Estado Islâmico), à instabilidade política crônica e à violência sectária. Síria Parece estar seguindo o mesmo caminho trágico, talvez até mais rapidamente.

O cardeal Zenari já havia alertado em 2019, durante um discurso em Budapeste: se nada mudar fundamentalmente, cristãos poderia desaparecer de Síria até 2060. O ataque de junho de 2025, os massacres de março e a violência subsequente parecem ter acelerado drasticamente esse cronograma sombrio. Alguns agora falam em uma ou duas décadas, não mais do que isso.

«"« cristãos"Excessivamente dispersos geograficamente e enfraquecidos pela intensa emigração durante o conflito, eles têm pouco território protetor para onde recuar", analisa Tigrane Yégavian, pesquisador do Instituto Cristão do Oriente e autor de "Minorias do Oriente, as Esquecidas da História". Ao contrário dos curdos, que controlam o nordeste do país, ou dos drusos, concentrados na região de Suwayda, no sul, cristãos estão espalhados por todo o país, vulneráveis em todos os lugares, maioria em lugar nenhum.

No final de setembro de 2025, dois jovens cristãos foram mortos a tiros em Wadi al-Nassara, o "vale dos cristãos" a oeste de Homs, uma das poucas áreas restantes onde eles constituíam maioria. Em Qosseyr, não muito longe dali, refugiados sunitas que haviam retornado após anos de exílio acusaram cristãos moradores locais por terem participado do despejo ao lado do Hezbollah libanês durante a guerraEles os forçam a sair para se apoderarem de suas propriedades e casas. A cidade cristã de Méhardeh, isolada em uma região predominantemente sunita, teve que subornar cidades vizinhas para evitar que concretizassem seu desejo de vingança.

Que esperança resta?

Apesar de tudo, apesar do medo e do desespero, alguns teimosamente se recusam a desistir. O irmão Bahjat Karakach, um padre latino em Aleppo, insiste com uma fé que inspira respeito: “Precisamos ser criativos, romper com os padrões rígidos de evangelização e encontrar novos caminhos. Não podemos deixar que o mal tenha a última palavra. Acreditamos no poder da graça de Deus e em a ressurreição"Palavras que brotam das próprias fontes de..." cristandade, nascido precisamente nesta terra.

A Igreja, em sua diversidade denominacional, continua a desempenhar um papel social vital para toda a população síria, distribuindo alimentos e assistência médica, e administrando escolas e clínicas abertas a todos, sem distinção de religião ou denominação. Talvez seja nesse serviço altruísta e universal que resida a melhor resposta ao ódio e ao sectarismo.

O evento "Luz para a Síria" (Luz para o Síria), organizado de 25 a 27 de novembro de 2025 em Damasco pelo Comitê Episcopal de Síria Sob a presidência do Núncio Apostólico Mario Zenari, o encontro reuniu as principais agências cristãs de ajuda humanitária e as partes interessadas locais para definir uma visão estratégica comum. Educação, saúde, emprego, reconstrução, diálogo inter-religioso, Diáspora, governança: os desafios são imensos, mas a vontade de reconstruir um futuro permanece.

A comunidade internacional também tem um papel crucial a desempenhar. A União Europeia, principal doadora de ajuda humanitária em Síria Com mais de 33 mil milhões de euros mobilizados desde 2011, a UE tem uma considerável influência. Condicionar a ajuda e o levantamento gradual das sanções a garantias concretas para as minorias poderá ser decisivo. O Centro Europeu para o Direito e a Justiça (ECLJ) já mobilizou eurodeputados para instar a Comissão a exigir essas garantias em qualquer discussão sobre o futuro do país.

Mas o tempo está se esgotando inexoravelmente. A cada dia que passa, famílias arrumam suas malas para nunca mais voltar. Cada ataque, cada ato de violência, cada humilhação diária, cada cruz quebrada em um túmulo, aproxima um pouco mais a comunidade cristã da destruição. Síria do ponto demográfico de não retorno.

“Somos estrangeiros em nossa própria terra”, dizem muitos cristãos sírios a jornalistas e trabalhadores humanitários que vêm ao seu encontro. Essa frase profundamente triste resume o sentimento de terem se tornado sobreviventes em uma terra que foi o lar de seus ancestrais por vinte séculos, muito antes da chegada do Islã.

O patriarca João X fez a pergunta certa, a única que importa, no funeral em junho: "Não estamos pedindo privilégios. Estamos simplesmente pedindo para poder viver em paz e segurança, como qualquer outro cidadão sírio. É pedir demais?"

Só o tempo dirá se este pedido — tão básico, tão humano, tão universal — será finalmente ouvido por aqueles que têm o poder de mudar as coisas. Enquanto isso, os sinos das igrejas sírias continuam a tocar, cada vez mais silenciosamente, cada vez menos frequentemente, por uma comunidade que diminui um pouco mais a cada dia. E, no entanto, contra todas as probabilidades, ela se recusa a desaparecer sem lutar, a se extinguir sem dar testemunho, a morrer sem esperança.

Via Equipe Bíblica
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