Introdução às Cartas Pastorais

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Origem deste nome— Quase não tem sido usado em termos gerais desde o século XVIII; mas é muito adequado para designar o pequeno grupo de escritos formado pelas duas cartas a Timóteo e a Carta a TitoEstas cartas, que datam do mesmo período da vida de São Paulo, são dirigidas a dois de seus discípulos mais próximos e compartilham muitas semelhanças tanto em pensamento quanto em estilo. Essa designação deriva tanto do assunto das três cartas quanto do propósito que o autor pretendia ao escrevê-las. Compostas para dois bispos, para dois “pastores” espirituais (sob a antiga aliança, os príncipes e sacerdotes de Israel já eram designados por essa denominação metafórica, cf. Isaías 44:28; Jeremias 2:8; Ezequiel 34:2, etc.; Nosso Senhor Jesus Cristo se apresenta como o Bom Pastor, cf. João 10:2 ss., e seus ministros são honrados com um nome idêntico, cf. Efésios 4:11, que se tornou costumeiro desde o início da Igreja para representar os líderes de denominações cristãs específicas), elas lhes fornecem instruções valiosas sobre como cumprir fielmente suas delicadas funções. A escolha e instituição de bispos, sacerdotes, diáconos e viúvas; certas regras relativas ao serviço divino; Os deveres das diferentes categorias de fiéis; a organização da vida de igrejas particulares: é isso que encontramos ali, juntamente com alguns detalhes pessoais sobre o autor e os destinatários. Essa característica comum confere-lhes um caráter distintivo, que nenhuma outra parte do Novo Testamento possui. O termo "carta pastoral" é usado para designar as instruções dirigidas pelos bispos aos seus sacerdotes e ao rebanho diocesano.

Sem dúvida, não devemos procurar uma teologia pastoral completa nessas cartas. De fato, elas contêm apenas uma série de conselhos práticos, escolhidos dentre aqueles que as circunstâncias de tempo e lugar tornaram mais urgentes. Contudo, os elementos essenciais estão lá; e sempre foram a fonte da qual todos os bons sacerdotes se nutriram, como a Igreja os convida a fazer durante a cerimônia de sua ordenação (“Tendo sido instruídos nas disciplinas que Paulo expôs”). Tite e a Timóteo, para que creiam no que leem, ensinem o que creem, imitem o que ensinaram e conservem puro e imaculado o dom do seu ministério. Pontifício Romano para a Ordenação de Sacerdotes, Ver Santo Agostinho, da doutrina cristã, 4, 16, 3, e especialmente o excelente comentário prático do Bispo Ginoulhiac, cartas pastoraisou Reflexões Dogmáticas e Morais sobre as Cartas de São Paulo a Timóteo e a Tite, Paris, 1870).

Embora sejam dirigidas diretamente a Timóteo e a TiteA individualidade dessas figuras sagradas praticamente desaparece; suas funções superiores são quase a única coisa que permanece visível. É por isso que nossas três cartas têm um caráter geral, embora sejam destinadas a indivíduos particulares.

A autenticidade das cartas pastorais não é atestada com menos força do que a dos outros escritos de São Paulo (ver a Introdução Geral); mas, como foi atacada violentamente no século XIX pelos racionalistas (em 1807 pela primeira vez). Segundo Baur e sua escola, as cartas a Timóteo e a Tite Elas não teriam sido compostas antes de meados do século II. Alguns críticos, no entanto, admitem que elas são, na verdade, baseadas nas cartas de São Paulo, consideravelmente reelaboradas; será bom discutir isso brevemente à parte. 

Ao longo de toda a história do cristianismo primitivo, nenhum autor ortodoxo expressou a menor dúvida sobre este ponto, enquanto uma longa série de testemunhos favoráveis pode ser citada. 1. O testemunho dos Padres Apostólicos, consistindo em citações, reminiscências e alusões mais ou menos características, mostra que os escritores eclesiásticos do final do primeiro século e dos primeiros anos do segundo (São Clemente) papa, em seu Ep. ad Corinto., o autor do’A esposa de Barnabé, São Policarpo, Santo Inácio, o autor de’Ep. para Diogneto, etc.) conheciam nossas três letras, como as possuímos hoje. 2° O testemunho dos antigos apologistas gregos, notadamente de São Justino (Diálogo com Trifão, 7 e 35; cf. Tite 3, 4) e de São Teófilo, Bispo de Antioquia (Ad Autol3.14; cf. 1 Timóteo 2:2, etc.), por volta de meados do século II. 3. O testemunho das versões antigas, notadamente a Peshitta siríaca e a Itala. 4. O testemunho dos primeiros hereges, alguns dos quais, como Marcião, rejeitaram as Epístolas Pastorais porque estas condenavam antecipadamente suas doutrinas perversas, enquanto outros, como Heracleão, Teódoto, etc., citaram passagens delas: em ambos os casos, isso atestou sua existência. 5. O testemunho das Igrejas particulares e, portanto, o daIgreja UniversalA Igreja na Gália é representada pela carta dos cristãos de Vienne e Lyon aos seus irmãos na Ásia e na Frígia, que menciona 1 Timóteo 3:15 e 4:3-4 (cf. Eusébio, História Eclesiástica, 3, 2-3; 5, 1, 17), ou por Santo Irineu (seu livro Contra as heresias Abre com uma citação de 1 Timóteo 1:4, com a fórmula: "Como diz o apóstolo". A Igreja de Alexandria tem como testemunhas Clemente de Alexandria e Orígenes; a Igreja da África, Tertuliano; a Igreja Romana, o cânone Muratoriano, que identifica especificamente as Epístolas Pastorais como escritos autênticos de São Paulo (Manual da Bíblia, t. 1, n. 41). 6° O testemunho dos manuscritos gregos mais antigos, entre eles o "Vaticanus", o "Alexandrinus", o "Sinaiticus". 7° O testemunho dos primeiros concílios, especialmente o terceiro concílio de Cartago, em 397. 

Quem não consegue ver o caráter científico inabalável de tal argumento? Mas nada encontra aceitação perante a crítica racionalista, que o contrapôs, como de costume, com provas intrínsecas, as quais devemos examinar rapidamente. 

O estilo, diz-se inicialmente, difere demasiado do de São Paulo para que estas cartas sejam de sua autoria. Contêm cerca de 150 expressões que não são utilizadas em mais nenhum lugar do Novo Testamento. Destas, 74 pertencem a 1 Timóteo, 28 a 2 Timóteo, 46 a... Carta a Tito. Observe entre outras as palavras σωφρονίζειν, σωφρονισμός, ϰαλοδιδάσϰαλος, ἑτεροδιδασϰαλεῖν, numerosas compostas de φίλος, novas fórmulas, como πιστὸς ὁ λόγος (1 Timóteo 1, 15; 3, 4, etc.), λόγος ὑγιής (Tite 2, 8), εὐσεϐος ζῆν (2 Timóteo 3, 12), etc. Por outro lado, notamos a ausência de vários termos familiares ao apóstolo dos pagãos (observamos ἐνεργεῖν, ϰαυχᾶσθαι, περισσός, σῶμα, etc.). E não apenas o vocabulário seria diferente, mas a estrutura gramatical também apresentaria diferenças notáveis (poucas construções quebradas, pouca obscuridade decorrente da riqueza de evidências, etc.), sem mencionar o estilo menos didático, os pensamentos menos abundantes e as fórmulas imperativas, frequentes aqui (cf. 1 Timóteo 5:7-8, 22-25; 2 Timóteo 3:1, 5, 12, etc.) e raras em outros lugares. — Sem negar a existência dessas divergências, responderemos que elas foram singularmente exageradas e que, se fossem tomadas como regra absoluta, a autenticidade de todos os escritos de São Paulo teria que ser questionada. De fato, "o mesmo fenômeno ocorre em todas as cartas; não há uma sequer que não contenha palavras que reaparecem em outros lugares. Por exemplo, há 94 na Epístola aos Santos, 15 de dezembro de 1964, que contêm palavras que se repetem em outros lugares. Por exemplo, há 94 na Epístola aos Santos, 15 de dezembro de 1964, que contêm palavras que se repetem em outros lugares. Carta aos Romanos96 na segunda carta aos Coríntios, 50 na dos Gálatas. Quando consideramos o número reduzido de páginas que temos do Apóstolo Paulo, o período ao longo do qual elas se distribuem, a variedade de assuntos que ele aborda (isso é particularmente verdadeiro nas Epístolas Pastorais) e a liberdade, habilidade e até mesmo genialidade que ele demonstra no manuseio de uma linguagem rica em si mesma, que ele agora precisava moldar para servir a um conjunto totalmente novo de ideias, seria justificável questionar se haveria uma uniformidade monótona, se seu vocabulário seria menos rico.” (Esta excelente resposta à objeção é do Sr. Reuss, uma das principais figuras da crítica racionalista.) Em vez de inovar em termos de estilo, um falsificador teria se concentrado em usar apenas o vocabulário mais comum do Apóstolo. Além disso, como também foi muito bem dito, “as peculiaridades do estilo são contrabalançadas por semelhanças ainda mais marcantes e por provas (quase) infalíveis da composição (dessas cartas) por São Paulo.”

Dificuldades cronológicas e biográficas também foram levantadas como objeções. Vários críticos afirmam que seria impossível encaixar os numerosos detalhes pessoais inseridos aqui e ali nas Epístolas Pastorais, e especialmente na Segunda Carta a Timóteo, no contexto da vida de São Paulo. — Sim, sem dúvida, se insistirmos, como muitas vezes se fez, em situar esses detalhes, e especialmente as viagens do autor, no contexto histórico da vida de Paulo. Atos dos ApóstolosQualquer tentativa desse tipo está fadada ao fracasso. Mas as dificuldades se atenuam se assumirmos, de acordo com Filipenses 2:24, Filemon 22, Hebreus 13:23-24, e seguindo uma tradição tão clara quanto antiga (veja a Introdução Geral e o comentário sobre as cartas aos Filipenses e aos...). Filemon) que São Paulo recuperou a sua liberdade em Roma, que viajou para Espanha, como há muito desejava (cf. Romanos 15, 28), isto é, nas diferentes regiões do Oriente mencionadas nas cartas a Timóteo e a Tite (cf. 1 Timóteo 1:3; 4:13; 2 Timóteo 1:18; 4:13, 20; Tite 1, 5; 3, 12), ou que sofreu um segundo cativeiro que terminou em martírio. Entre os anos 63 e 67, teve tempo suficiente para completar os vários itinerários aqui indicados. Pouco importa que não seja possível determinar com certeza a ordem dessas viagens, devido à falta de informações suficientes: várias combinações perfeitamente aceitáveis foram propostas, e não se tem o direito de exigir mais. Veja C. Fouard, São Paulo, seus últimos anos, Paris, 1897, p. 111 e seguintes. Vários escritores racionalistas também admitem o fato de um duplo cativeiro de São Paulo em Roma.

Também foi levantada a objeção quanto à suposta diferença doutrinal entre as Epístolas Pastorais e aquelas que os críticos atribuem a São Paulo. Mas essa diferença, na verdade, não existe. Citemos novamente o Sr. Reuss: «No que diz respeito ao ensino teológico, não se encontra absolutamente nada nessas três cartas que contradiga a conhecida doutrina de São Paulo, ou mesmo que lhe seja estranho. Pelo contrário, suas ideias fundamentais são facilmente discerníveis, embora o autor em nenhum momento seja levado a expô-las teoricamente e em sua totalidade. De fato, isso teria sido supérfluo em relação às pessoas a quem ele se dirige, e numa época em que ele se preocupava exclusivamente com interesses práticos.» Quanto a Deus Pai, Nosso Senhor Jesus Cristo, salvação, fé, o papel da Lei Mosaica, etc., encontramos aqui os princípios e teorias que caracterizam o Apóstolo dos Gentios. Se a forma de nossas três cartas é menos dogmática, isso se deve ao objetivo puramente prático e moral que seu autor tinha em mente. É verdade que ele insiste na necessidade das boas obras; mas em seus outros escritos, da mesma forma, sempre que surge a oportunidade, ele pede como algo necessário que a fé dê frutos (cf. Romanos 2:7 e 13:3; 1 Coríntios 13:3; 2 Coríntios 5:10; Gálatas 5:6; 1 Tessalonicenses 5:8, etc.). 

É também um exagero grosseiro afirmar que a organização das Igrejas, conforme pressuposta em nossas três cartas, "apresentaria um estado de coisas como o que só ocorreu mais tarde", em meados do século II. Um simples olhar para as instituições eclesiásticas do período anterior basta para convencer-se de que nada de essencial havia sido introduzido ou modificado e, em particular, que não encontramos ali "um sistema hierárquico mais desenvolvido". Os Atos dos Apóstolos e as cartas anteriores de Paulo nos apresentam uma organização tão completa quanto a das Epístolas Pastorais: os apóstolos, os sacerdotes-bispos (cf. Atos dos Apóstolos 11, 30; 14, 23; 15, 2 e seguintes; 20, 28, etc.; Romanos 12, 7 e seguintes; 1 Coríntios 12, 28; Efésios 4:11; Filipenses 1:1, etc.), os diáconos (Atos dos Apóstolos 6:2 ss.; Filipenses 1:1, etc.), as diaconisas (Romanos 16, 1; 1 Coríntios 16:15), aqueles encarregados do ministério aos pobres (1 Coríntios 16:2; 2 Coríntios 8-9), etc., e, como pontos ainda mais minuciosos, a imposição de mãos para conferir seus poderes aos ministros sagrados (Atos dos Apóstolos 13, 1-4, etc.), a proibição de mulheres falarem em assembleias religiosas (1 Coríntios 11, 5, etc.), etc. Todas essas instruções detalhadas estão, além disso, em perfeita harmonia com o espírito admiravelmente prático do qual São Paulo dá muitas provas em suas cartas, e especialmente na primeira aos Coríntios.

Uma objeção final é extraída dos elementos polêmicos das Epístolas Pastorais. Os falsos mestres que elas atacam repetidamente e com grande vigor são, segundo se alega, nada mais que os gnósticos do século II; isso resolveria a questão da autenticidade de uma maneira absolutamente contrária a São Paulo. Mas essa afirmação não é mais bem fundamentada do que as anteriores. A prova reside, em primeiro lugar, na incapacidade dos críticos de concordarem sobre o sistema gnóstico representado em nossas três epístolas (as teorias de Marcião, as de Valentim, os ofitas, os predecessores de Valentim, um gnosticismo mitigado, etc., já foram todas mencionadas), e, no entanto, nada é mais conhecido do que esse sistema. Além disso, é certo que os hereges aos quais o apóstolo se refere aqui a guerra, eram principalmente cristãos judaizantes, embora fossem um pouco mais avançados, em certos pontos, do que os judaizantes dos Atos (Atos dos Apóstolos 15, 1 ss. etc.) e as cartas anteriores de São Paulo (especialmente a Segunda Carta aos Coríntios e a Carta aos Gálatas), e que elas poderiam ser consideradas precursoras muito remotas do Gnosticismo (esses detalhes serão desenvolvidos no comentário). Concluamos dizendo, com um autor protestante, que "todos os argumentos apresentados contra a autenticidade das Epístolas Pastorais falam a seu favor quando examinadas mais de perto". Outro afirma, não menos precisamente: "Se compararmos nossas três cartas com as cartas que foram forjadas no século II ou posteriormente, e atribuídas a São Paulo ou a outros apóstolos, reconhecemos que as primeiras são manifestamente autênticas".

Bíblia de Roma
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A Bíblia de Roma reúne a tradução revisada de 2023 do Abade A. Crampon, as introduções e comentários detalhados do Abade Louis-Claude Fillion sobre os Evangelhos, os comentários sobre os Salmos do Abade Joseph-Franz von Allioli, bem como as notas explicativas do Abade Fulcran Vigouroux sobre os demais livros bíblicos, todos atualizados por Alexis Maillard.

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